Ciência e saúde

Ciência e pseudociência: o que as distingue afinal?

O filósofo sueco Sve Ove Hansson apresentou, em 2009, um sistema de demarcação entre ciência e pseudociência

Por Carlos Orsi*

Um efeito cultural interessante da pandemia foi arrefecer o apelo de um certo relativismo epistêmico vulgar, a tendência de, em nome de uma pretensa sofisticação filosófica, tratar a ciência como “só mais uma narrativa”, cujo suposto valor objetivo apenas reflete uma convenção social. Quando a realidade da COVID-19 subiu na calçada como uma jamanta descontrolada a 200 km/h, essa conversinha perdeu muito de seu apelo.

O despertar súbito para o valor excepcional – e, sim, objetivo – da ciência como instrumento de investigação e descrição da realidade produziu uma preocupação renovada com o problema das pseudociências, algo que até poucos anos atrás chegava a ser meio feio discutir em público, e uma consciência, também renovada (e ampliada), a respeito da importância e da necessidade de identificá-las e expô-las pelo que são.

O novo ímpeto, no entanto, não demorou em tropeçar num velho obstáculo – o problema da demarcação: o que distingue ciência de pseudociência, afinal? É uma questão filosófica que ainda carece de boa resposta. Embora seja fácil identificar casos extremos (psicanáliseastrologiahomeopatia), há dificuldades e sutilezas que precisam ser melhor resolvidas.

Uma dessas dificuldades, que não diz respeito diretamente ao problema da demarcação mas – poderíamos dizer – orbita em torno dele, é: e se a doutrina/sistema/crença acusada de pseudocientíficos jamais se pretendeu ciência? É, no fundo, uma questão semântica, já que o prefixo “pseudo” significa “falso”. Eu, por exemplo, não posso ser um “pseudo-sueco”, mesmo tendo nascido no Brasil (e de família luso-italiana), porque nunca me apresentei, ou fui apresentado, como cidadão ou nativo da Suécia a ninguém.

Correlação

Muitos sistemas pseudocientíficos (incluindo os três citados na seção anterior: homeopatia, psicanálise, astrologia) dividem-se em facções, com certos grupos de praticantes que alegam ter base científica para o que fazem e outros que se veem envolvidos em algo diferente (“modos alternativos de saber”).

Quando surge a acusação de que o sistema é pseudocientífico, os grupos do segundo tipo reagem com indignação e um certo ar de superioridade: o crítico que acha que a doutrina deles tem pretensões científicas certamente não sabe do que está falando, rá-rá-rá. Essa imputação de ignorância é especialmente irritante porque ou é feita de má-fé, ou revela uma profunda ignorância – real, palpável – da parte do astrólogo, homeopata, psicanalista etc., a respeito do que fazem, dizem e escrevem os próprios colegas.

No caso dos astrólogos, por exemplo, é meio constrangedor ter de ser um cético a informá-los de que há 41 anos a Associação Astrológica Britânica edita uma revista de artigos pretensamente científicos sobre sua arte, chamada Correlation, que publica “estudos sobre a evidência empírica e a metodologia da correlação entre as posições e movimentos dos corpos celestes e sua relação com a vida e os processos físicos na Terra”.

Mas enfim. Vamos supor, para fins de argumento, que existam doutrinas, crenças e sistemas por aí que são acusados de pseudocientíficos sem que jamais, em momento algum, uma parcela significativa de seus adeptos ou praticantes tenha reivindicado para si o caráter de “ciência”. Mais: vamos conceder ao astrólogo (ou homeopata etc.) que não se pretende científico o privilégio momentâneo de refutar liminarmente as acusações de prática pseudocientífica, bastando para isso articular a fórmula mágica “mas nunca disse que era ciência”. É um privilégio sustentável?

Verdade e consequência

Mais ou menos (e mais para menos). Há propostas de critérios de demarcação, como a que o filósofo (e sueco bona fide) Sve Ove Hansson apresentou em 2009, que consideram que um sistema pode ser considerado pseudocientífico mesmo sem reivindicar para si o título de “ciência”. A discussão filosófica levantada por Hansson é densa e cheia de nuances, então vou oferecer aqui uma versão derivada: inspirada na dele, mas adaptada por mim e extremamente simplificada.

Bem grosso modo, então, seria possível considerar pseudocientífico um sistema ou doutrina se ele for (1) composto por alegações desprovidas de justificativa empírica (vamos desembrulhar essa expressão daqui a pouco) e (2) na comunidade que mantém/defende/sustenta esse sistema, é dominante a crença infundada de que a justificativa empírica existe (se, ao contrário, a comunidade reconhece que suas alegações não têm justificativa empírica, a doutrina se converte numa questão de fé, e aí é outra história).

E que monstrengo é esse, “justificativa empírica”? Evidência válida, objetiva, observável, intersubjetiva, verificável. Qualquer alegação que se pretenda baseada nesse tipo de evidência está se oferecendo para a ciência como objeto de análise.

Por exemplo, a afirmação de que a janela oeste do meu apartamento tem vista para um rio onde, no verão, passam navios transatlânticos é empiricamente justificável: qualquer pessoa que venha aqui entre junho e setembro, de posse de uma bússola corretamente calibrada, e fique olhando pela janela por algumas horas vai ver que isso é verdade – não importa sua raça, gênero, religião ou partido político. Não é fé, não é relativo à cultura, é fato objetivo e verificável.

A afirmação de que as vacinas para COVID-19 reduzem o número de casos, principalmente casos graves e morte, causados pela doença também é empiricamente justificável. Já as afirmações de que capricornianos tendem a ser introvertidos, ou de que evitar pensamentos negativos atrai sucesso, não são. Mas astrólogos e coaches da prosperidade insistem em tratá-las como se fossem. Portanto…

Talvez seja possível encontrar uma palavra mais geral para denominar “sistemas empiricamente injustificados que esperam ser tratados como se fossem empiricamente justificados” e que inclua, além dos sistemas pseudocientíficos que efetivamente tentam se passar por ciência (instituindo programas de pós-graduação, disputando verbas de pesquisa, tentando influenciar políticas públicas etc.), as que insistem que nunca quiseram o rótulo ou as prerrogativas sociais correspondentes. Eu usaria uma sigla (SEITe, para “Sistema Empiricamente Injustificado que Tenta”), ou quem sabe “delírios”, mas o pessoal pode não gostar.

Uvas verdes

Duas notas finais. Primeiro, é duvidosa (ao menos, do ponto de vista histórico) a boa-fé da alegação de que um SEITe qualquer “nunca disse que era ciência”. Essa manobra retórica tende a aparecer, na biografia das ideias e das doutrinas, como recuo – depois que o SEITe tentou se sentar à mesa das ciências e caiu da cadeira. É uma estratégia de uvas verdes.

Por exemplo, um dos maiores ocultistas do século 19, Arthur Edward Waite (1857-1942), um dos criadores da mais clássica versão do baralho de tarô, não apenas chamou um de seus livros de “As Ciências Ocultas”, como deixou bem claro que a palavra “ciências”, aí, não era metáfora: “os experimentos do passado podem ser reproduzidos no presente”, escreve. “O místico, o esotérico e o oculto (…) constituem um conhecimento real, positivo e efetivo”, baseado em “evidência avassaladora”. Essas são palavras de 1891, quando o mundo da “pesquisa psíquica” parecia oferecer uma esperança de validação científica para a ideia de poderes paranormais e mundos espirituais. Validação que não veio.

Também, quando computadores começaram a se tornar populares na década de 1970, astrólogos acorreram à nova tecnologia para rodar cartas celestes e fazer cruzamentos com grandes dados populacionais, em busca de prova científica, estatística, de que os astros influenciam destinos e personalidades. Prova que não veio.

Segundo: é duvidoso, também, que, fora das elaborações teológicas mais abstratas e sofisticadas, exista realmente alguma doutrina e sistema de crenças que não reivindique para si – nem que seja só quando parece que os céticos não estão olhando – algum tipo de justificativa empírica. Que não seja, no fundo, um SEITe.

Em seu estudo da cena esotérica dos Estados Unidos na década de 1970, “The Esoteric Scence, Cultic Milieu and Occult Tarot” (“A Cena Esotérica, o Meio Cultista e o Tarô Oculto”), o sociólogo Danny Jorgensen – que escreve sem muita simpatia pelo movimento cético e com grande afeto pelos ocultistas – afirma que, para muitos dos membros dessa comunidade, como leitores de tarô, astrólogos, bruxas, seus clientes, mestres e discípulos de doutrinas diversas – “o mais importante era a aplicação do conhecimento [esotérico] às condições mundanas da existência”.

Em outras palavras, buscavam resultados na vida prática: no amor, no trabalho, na saúde, nas finanças. São efeitos que essas pessoas não buscariam se não acreditassem que o conhecimento mágico era empiricamente justificado, que sua aplicação causa efeitos práticos, objetivos, observáveis. O que faz dele, se não uma pseudociência comme il faut, algo muito parecido – um SEITe, membro da mesma família e alvo legítimo das mesmas críticas.

Atualização em 12/09/2022: Trecho sobre o trabalho de Sve Ove Hansson corrigido para clarificar que os critérios de demarcação utilizados neste artigo são inspirados em Hansson, mas adaptados e derivados, e portanto não refletem o pensamento e a proposta original do filósofo.

*Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de “O Livro dos Milagres” (Editora da Unesp), “O Livro da Astrologia” (KDP), “Negacionismo” (Editora de Cultura) e coautor de “Pura Picaretagem” (Leya), “Ciência no Cotidiano” (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e “Contra a Realidade” (Papirus 7 Mares)

Publicado originalmente na Revista Questão de Ciência sob o título: “Mas nunca dissemos que era ciência”

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