CCBB São Paulo apresenta até 19 de agosto a exposição “A.R.L. Vida e Obra”, destacando a produção do artista outsider Antônio Roseno de Lima. Descoberto pelo professor Geraldo Porto, Roseno transformou materiais do lixo em arte bruta, retratando temas como autorretratos, animais e figuras públicas
A exposição “A.R.L. Vida e Obra“, em até 19 de agosto, é uma oportunidade única para o público conhecer a produção de Antônio Roseno de Lima, artista outsider descoberto no final da década de 1980 pelo professor doutor do Instituto de Artes da UNICAMP, Geraldo Porto, que também assina a curadoria da mostra. Semianalfabeto, o fotógrafo e pintor tirou da dura realidade de favelado a inspiração para criar uma obra que é reflexo da mais pura e encantadora arte bruta, onde autorretratos, onças, vacas, galos, Santos Dumont, bêbados, mulheres e presidentes foram seus temas principais.
Apesar das condições precárias em que vivia na favela Três Marias, em Campinas – SP (onde morou de 1962 até sua morte, em junho de 1998), Roseno expressava seus sonhos e observações do cotidiano através de suas pinturas, muitas vezes utilizando materiais improvisados encontrados no lixo: pedaços de latas, papelão, madeira e restos de esmalte sintético. Quando gostava de algum desenho, recortava-o em latas de vários tamanhos para usar como modelo, além de outros materiais como lã, em épocas de frio. Seu barraco era sua tela, onde cores vibrantes e figuras contornadas em preto ganhavam vida, revelando uma poesia visual única. Nas obras, as diversas aspirações do artista são representadas, mas uma delas se repete em toda a sua arte: “Queria ser um passarinho para conhecer o mundo inteiro!“
Com cores fortes, escrevia nos quadros: “Este desenho foi fundado em 1961“, referindo-se ao início de sua obra de desenho, pintura e fotografia, com um “professor espanhol“, em São Paulo. Mesmo sendo semianalfabeto, as palavras sempre fizeram parte de sua expressão poética, como signos herméticos, expostos respeitando a anterioridade das figuras e evidenciando desconhecimento das regras gramaticais. Amigos e crianças da favela o ajudavam com a leitura e as anotações em um caderno, que eram fotocopiadas para serem coladas na parte de trás dos quadros. Os bilhetinhos carregados de informação com as mais diversas letras, avisavam sobre os materiais, processo de criação, execução, conservação da pintura e arrematavam: “Quem pegar esse desenho guarda com carinho. Pode lavar. Só não pode arranhar. Fica para filhos e netos. Tendo zelo, dura meio século.”
Impressionado pela singularidade da obra de Roseno, o curador Geraldo Porto conta que a primeira vez que viu seus quadros foi em uma exposição coletiva de artistas primitivistas no Centro de Convivência Cultural de Campinas, em 1988. “Naquele instante, tive a certeza de estar diante de um artista raro“. Ele acrescenta que o pintor se destacava da mediocridade “primitivista” idolatrada por colecionadores estrangeiros de arte ingênua e naif. Depois de conhecido, passou a ser “chamado pelos jornalistas de ‘pintor pop da favela’, porque seus quadros misturavam imagens, fotografias, propagandas e palavras como nos cartazes comerciais“, explica Porto, acrescentando que Antônio Roseno desconhecia não somente este, mas qualquer outro movimento artístico.
Depois das reportagens que o mostraram como favelado, analfabeto e doente, passou a escrever em seus quadros em letras garrafais: “Sou um homem muito inteligente“, no intuito de se livrar dessas imagens tão negativas. Soledade, sua grande companheira na vida, revelou que “Antônio sobrevive às custas de cinco tipos de remédios, mas ele não gosta de falar de suas doenças e detesta ser chamado de doente“. E mesmo diante da devoção de sua mulher, o artista insistia em repetir: “Nunca tive amor na vida“, independentemente das quase quatro décadas de relacionamento que os dois mantiveram.
Foi em 1991 que Geraldo fez a curadoria da primeira exposição individual de A.R.L., na galeria de arte contemporânea Casa Triângulo, de Ricardo Trevisan, em São Paulo. Logo após, uma televisão alemã fez uma matéria sobre Roseno, veiculada na Europa durante a exposição Documenta de Kassel. A Folha de São Paulo recomendou sua mostra como uma das melhores da temporada. Seus trabalhos hoje figuram em publicações de renome mundial. Porém, pobre e doente, morreu em 1998, quando uma boa parte de seus trabalhos já estava em coleções de arte no Brasil e no exterior. Infelizmente, outra grande parte foi jogada no lixão pelo caminhão da prefeitura, chamado pela família para limpar a casa.
Assim como Arthur Bispo do Rosário, A.R.L. faz parte desses “artistas virgens” ou “outsiders“, autores dessa “arte incomum” que, em alguns casos, são frutos de surtos psicóticos. Jean Dubuffet (pintor francês, primeiro teórico da arte bruta), por exemplo, refere-se a eles como “indivíduos sem condicionamento cultural, sem assistência profissional e sem conhecimento das tradições e da história da arte, que realizam uma operação artística quimicamente pura“. Para Geraldo Porto, Antônio Roseno “é sim um artista outsider, pela originalidade do seu processo criativo. Sua criatividade desconhecia limites entre fotografar, pintar ou escrever. Analfabeto, ele escrevia; fotógrafo, ele pintava; pintor, ele tecia. Pintava ‘para não ficar doente’. Perguntei-lhe por que pintava tantas vacas: ‘Porque eu gosto muito de leite’, ele me respondeu“.
Pedaços da alma e da vida
Com o intuito de desvendar as diferentes camadas da obra de Antônio Roseno de Lima, a exposição em cartaz no CCBB São Paulo está dividida em seis seções, apresentando um panorama completo das diversas facetas do artista. Na primeira delas, “O Bêbado“, vislumbramos as raízes de A.R.L. em sua arte, onde se destacam cores chapadas e não existem meios-tons ou efeito de claro-escuro, além do uso de palavras. Iniciada em 1975, essa série traz rostos de olhos embaralhados e alucinados pela bebida, trabalho que o projetou como artista no mercado internacional, se tornando sua marca registrada. Em “Recortes da Cidade“, mergulhamos nas aspirações e fantasias do artista, onde o vemos estampado em notas de dinheiro (fora de circulação); a casa bonita, colorida e com luz elétrica; o prédio moderno e a fábrica onde almejava trabalhar.
Na seção “Presidentes“ figuram fatos históricos e notáveis como Afonso Pena, Nilo Peçanha, Getúlio Vargas, Mário de Andrade e Santos Dumont, o seu maior ídolo (aquele que provavelmente lhe embutiu o desejo de ser um passarinho). Já em “O Fotógrafo“, temos reflexos de sua grande paixão, o ofício que aprendeu a exercer aos 35 anos, em São Paulo capital, e tentou manter vivo no interior (Indaiatuba), mesmo depois de fechar seu estúdio por falta de recursos. “Frutos, Flores e Animais” trazem composições ingênuas de galos, sapos, cavalos, gatos, capivaras e onças ou ainda quadros com traços quase “picassianos” de vacas. “Mulheres e Santas” completa o passeio pela alma criativa de Roseno, um galanteador que gostava de retratar mulheres bonitas, e que seguiu as homenageando em forma de sereias ou à imagem de Nossa Senhora Aparecida.
Além disso, a exposição contará também com duas instalações. Em “Foto Santo Antônio“, são projetadas imagens em looping, formando um vídeo com diferentes fotografias tiradas por Roseno, sendo a maioria delas em preto & branco e outras com suas intervenções coloridas à mão. Inclusive, grande parte de suas fotografias está hoje no Centro de Memória da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. Em “A.R.L Animado“, cerca de 20 obras foram reimaginadas por Nélio Costa. As imagens, criadas a partir do desmembramento e transformação de elementos das obras originais, respeitam a integridade do trabalho de Antônio. Cada obra selecionada recebeu um tratamento personalizado, resultando em uma experiência única para os espectadores, que poderão apreciar a produção artística desse grande “desconhecido” sob uma nova perspectiva.
Como parte do seu programa de inclusão social, visando garantir o acesso a um número maior de visitantes, a mostra traz QR Codes nas fichas de identificação de todos os seus quadros, possibilitando a audiodescrição de cada um deles. Outra iniciativa de acessibilidade é a leitura tátil de três telas que estão reproduzidas em MDF, com texturas variadas: “Bêbado com Cigarro I” (1986), onde está uma das representações mais emblemáticas da carreira de Roseno, um homem embriagado com três fileiras de orelhas, sobrancelhas, olhos, narizes e bocas, cada uma com um cigarro entre os lábios; O Galo é “Marido da Galinha I” e “Abacaxi” (ambos sem data), que também estão entre os temas mais recorrentes do artista.
Com a exposição “A.R.L. Vida e Obra”, o público vai poder conhecer melhor Antônio (um entre cinco irmãos), nascido em 1926, na cidade de Alexandria (RN). Aos 22 anos, ele decide sair da roça para morar na cidade, fazendo doce com sua madrinha. Aos 30 anos, largou o casamento com Cosma, com quem teve cinco filhos, para buscar uma vida melhor em São Paulo. Ali se dedicou à fotografia, antes de se estabelecer na favela Três Marias, em 1962, onde produziu a maior parte de sua arte.
Apesar de afirmar que nunca encontrou o amor, viveu ao lado de Soledade, uma líder comunitária, mulher trabalhadeira, a quem ele não dava um sapato, mas três de uma vez, tamanho eram seus cuidados para com ela. Uma amiga com quem brigava e fazia as pazes, sua companhia na alegria, mas principalmente nas doenças. Das dificuldades e do desconhecimento público em vida, o trabalho de Roseno, que resume sua história, ganhou reconhecimento internacional, com suas obras sendo exibidas em museus renomados em todo o mundo. Um legado que inspira e emociona até os dias de hoje.
Ao patrocinar este projeto, o Banco do Brasil e a BB Asset reafirmam o seu apoio às artes plásticas e à brasilidade, além de valorizar projetos que promovam trocas significativas com o público e ofereçam caminhos para compreender a construção contemporânea de identidades.
Sobre o CCBB São Paulo
O Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), em São Paulo, iniciou suas atividades há mais de 20 anos e foi criado com o objetivo de formar novas plateias, democratizar o acesso e contribuir para a promoção, divulgação e incentivo da cultura. A instalação e manutenção de nosso espaço em um prédio, em pleno centro da capital paulista, reflete também a preocupação com a revitalização da área, que abriga um inestimável patrimônio histórico e arquitetônico, fundamental para a preservação da memória da cidade. Temos como premissa ampliar a conexão #Pública dos brasileiros com a cultura, em suas diferentes formas. Essa conexão se estabelece mais genuinamente quando há desejo de conhecer, compreender, pertencer, interagir e compartilhar. Temos consciência de que o apoio à cultura contribui para consolidar sua relevância para a sociedade e seu poder de transformação das pessoas. Acreditamos que a arte dialoga com a sustentabilidade, uma vez que toca o indivíduo e impacta o coletivo, olha para o passado e faz pensar o futuro. Com uma programação regular e acessível a todos os públicos, que contempla as mais diversas manifestações artísticas e um prédio, que por si só, já é uma viagem na história e arquitetura, o CCBB SP é uma referência cultural para os paulistanos e turistas da maior cidade do Brasil.
Serviço
“A.R.L. Vida e Obra” de Antônio Roseno de Lima
Curador | Geraldo Porto
Centro Cultural Banco do Brasil- CCBB São Paulo
Prédio Anexo: Rua da Quitanda, 80 – Centro Histórico – SP, próximo à estação São Bento do Metrô
Período: 26 de junho a 19 de agosto de 2024
Funcionamento: aberto todos os dias, das 9h às 20h, exceto às terças.
Ingressos gratuitos: disponíveis no site bb.com.br/cultura e na bilheteria física do CCBB São Paulo
* a partir de 21/6
Classificação Indicativa: Livre
Informações: (11) 4297-0600
Estacionamento: O CCBB possui estacionamento conveniado na Rua da Consolação, 228 (R$ 14 pelo período de 6 horas – necessário validar o ticket na bilheteria do CCBB). O traslado é gratuito para o trajeto de ida e volta ao estacionamento e funciona das 12h às 21h.
Transporte público: O CCBB fica a 5 minutos da estação São Bento do Metrô. Pesquise linhas de ônibus com embarque e desembarque nas Ruas Líbero Badaró e Boa Vista. Táxi ou Aplicativo: Desembarque na Praça do Patriarca e siga a pé pela Rua da Quitanda até o CCBB (200 m).
Van: Ida e volta gratuita, saindo da Rua da Consolação, 228. No trajeto de volta, há também uma parada no metrô República. Das 12h às 21h. Entrada acessível: Pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida e outras pessoas que necessitem da rampa de acesso podem utilizar a porta lateral localizada à esquerda da entrada principal.
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