Ciência e saúde

Cannabis medicinal: muitos confrontos e poucas evidências

A Cannabis não é um fármaco ou uma substância isolada. Trata-se de uma planta, um produto vegetal. Então, estamos falando de um conjunto de moléculas presentes na planta, algumas das quais capazes de alterar o funcionamento do organismo humano

Por André Bacchi*

Embora a discussão sobre cannabis medicinal, em geral, tangencie as evidências científicas, as decisões práticas sobre o seu emprego (ou não) estão muito distantes delas. Ao falar sobre cannabis medicinal, surgem misturas altamente polarizadas de aspectos culturais, opiniões subjetivas, preconceitos e paixões que, infelizmente, não abrem espaço para a racionalidade científica.

De um lado, temos pessoas mais conservadoras que não conseguem enxergar a cannabis como uma possível ferramenta terapêutica, trazendo à discussão um conceito maniqueísta de que existem substâncias que são intrinsecamente ruins (as drogas) e outras que são intrinsecamente boas (medicamentos).

Nesse contexto, afirmam falaciosamente que cogitar o uso medicinal da cannabis seria apenas uma espécie de atalho para legalizar (e até mesmo incentivar) o seu uso em qualquer situação. Essa postura que estigmatiza determinadas substâncias químicas com algum potencial terapêutico (bem como estigmatiza seus usuários) dificulta o estudo de novas ferramentas terapêuticas e o progresso científico.

No polo oposto, temos gente apaixonada pela cannabis, cujo entusiasmo com o uso medicinal está muito acima das evidências que o suportam. Em geral essas pessoas enxergam a cannabis como uma espécie de panaceia capaz de resolver ou atenuar dezenas de problemas de saúde. Há, inclusive, aqueles que se denominam “especialistas em medicina canábica”. Este último termo me soa tão estranho quanto um profissional que se apaixonasse pelos diversos usos do AAS e se autodenominasse “especialista em medicina salicílica”.

Estamos falando aqui sobre ferramentas terapêuticas. E ferramentas terapêuticas só exercem efeitos benéficos em contextos adequados, em indicações bem definidas e em conjunto com outras ferramentas. Nesse sentido, apegar-se de modo apaixonado a uma ferramenta é arriscado: uma ideologia que promova o uso de martelos acima de tudo tentará reduzir todos os problemas do mundo a pregos, reduzindo a probabilidade do emprego racional do instrumento apenas onde ele é realmente necessário.

É provável, portanto, que este texto desagrade à maioria das pessoas que se encontram em algum dos polos citados acima. Sendo assim, entre a demonização e a canonização da cannabis, tentarei ser o menos reducionista possível. Para isso precisarei abordar três pontos fundamentais neste tema: a diferença entre a discussão do uso medicinal e do uso recreativo; as características farmacológicas da cannabis que oferecem plausibilidade como ferramenta medicinal; e o panorama geral das evidências científicas sobre seu uso.

Recreativo vs. medicinal

O primeiro ponto ao se discutir objetiva e cientificamente o uso da cannabis como medicamento é diferenciá-lo do uso recreativo. Quando se fala em autorizar o uso medicinal de cannabis em qualquer situação, há sempre alguém que afirme: “Isso é só desculpa para liberar o uso de drogas”. E a resposta que é dada tende a ser esta: “Mas estamos falando aqui somente do uso medicinal”, como se o uso medicinal fosse uma espécie de atenuante para o uso recreativo. Isso faz parecer que a discussão sobre o uso medicinal da cannabis é mais simples do que a discussão sobre a legalização do seu uso recreativo. Isso não é verdade.

É claro que a discussão sobre a legalização de uma substância química para uso sem finalidade terapêutica é algo bastante complexo (e foge ao escopo deste texto). É necessário mensurar, por exemplo, a segurança e os riscos do uso a longo prazo, questões socioeconômicas individuais e coletivas, o impacto no sistema de saúde e na segurança pública etc.

Há ainda a questão filosófica do paradigma liberal – se todo ser humano adulto, uma vez informado dos riscos, deve ou não ser livre para adotar qualquer conduta que não implique em perigo grave ou prejuízos para terceiros. Esse é o paradigma que sustenta, por exemplo, tanto o uso legal de drogas como tabaco e álcool, quanto as limitações impostas a esse uso (a proibição de fumar em locais fechados e de dirigir embriagado, por exemplo).

A discussão sobre o uso medicinal de qualquer droga talvez não envolva esse tipo de complicação filosófica, mas nem por isso é menos complexa.

Quando falamos sobre uso medicinal, existe o ônus da prova que recai sobre quem se propõe a afirmar que a substância produz benefício. Em outras palavras, além de mensurar o risco, precisamos de estudos que nos mostrem um ponto fundamental (e que é dispensado na discussão sobre o uso recreativo): a eficácia da substância para combater ou amenizar uma determinada condição. O uso de qualquer medicamento está pautado na relação positiva entre benefício e risco.

Sendo assim, precisamos garantir que exista uma probabilidade significativa de benefício futuro que supere eventuais riscos trazidos pelo uso. E essas probabilidades são inferidas a partir de evidências de alta qualidade que permitam a extrapolação adequada para o contexto clínico.

A panaceia teórica

Primeiramente, precisamos entender que “cannabis” não é um fármaco ou uma substância isolada. Trata-se de uma planta, um produto vegetal. Então, estamos falando de um conjunto de moléculas presentes na planta, algumas das quais capazes de alterar o funcionamento do organismo humano. Ou seja, não é a cannabis, em si, que provoca efeitos, mas alguns de seus componentes (ou mesmo a combinação de vários deles).

Dentre esses componentes, os que mais se destacam são o delta-9-tetrahidrocanabinol (THC) e o canabidiol (CBD) por serem os mais estudados (e ainda assim, pouco compreendidos). Mas estes são apenas dois dos mais de 110 canabinoides, que integram um conjunto de mais de 400 fitoelementos presentes na cannabis. Essa é a proporção da nossa ignorância.

Para que qualquer substância, seja ela produzida dentro de nós (como um hormônio ou neurotransmissor) ou obtida externamente (como um fármaco), possa provocar algum efeito no organismo, é necessário que ela interaja com determinadas estruturas nas nossas células (que podem ser canais iônicos, enzimas, proteínas reguladoras, material genético, etc).

Esses alvos farmacológicos são chamados de receptores. No contexto da cannabis, ao longo do tempo, conseguimos identificar dois receptores que são os alvos farmacológicos do THC: foram chamados de receptores canabinoides tipo 1 e tipo 2 (receptores CB1 e CB2, respectivamente).

Você pode estar se perguntando: se temos receptores canabinoides no nosso organismo, então nosso corpo foi preparado para receber compostos derivados da cannabis? Na verdade, não. Estes receptores foram descobertos pelo uso da cannabis e por isso receberam esse nome. O mesmo aconteceu no passado, por exemplo, com receptores nicotínicos (que são receptores para acetilcolina descobertos pelo uso da nicotina) e com receptores opioides (descobertos pelo uso de ópio e outros derivados da papoula, embora sejam receptores endógenos para endorfinas e encefalinas).

Este é um ponto importante: o fato de o corpo humano ter estruturas que parecem “preparadas” para receber e reagir a substâncias externas não significa que existe algum “plano da natureza” para que utilizemos essas substâncias. O fato de todos os seres vivos do planeta descenderem de um mesmo ancestral comum e usarem os mesmos processos bioquímicos básicos simplesmente torna altamente provável que moléculas expressas por um tipo de organismo tenham efeitos sobre outros. É comum, na ciência, descobrirmos receptores com o uso de uma substância exógena e depois buscarmos pela substância endógena capaz de ativá-los naturalmente.

Essa busca conduziu à identificação da anandamida e do 2-araquidonilglicerol (2-AG), duas substâncias produzidas pelas nossas próprias células (chamadas de canabinoides endógenos) que interagem com os receptores CB1 e CB2. Isso inaugurou um rico campo de estudo que culminou na descrição de um complexo sistema chamado de sistema endocanabinoide.

E aqui está um ponto muito importante: este é um sistema ubíquo, ou seja, receptores canabinoides estão distribuídos em diversos locais do organismo e contribuem para a regulação de inúmeros processos fisiológicos. É claro que existe um grande destaque para os receptores canabinoides distribuídos no sistema nervoso central (e que medeiam os efeitos psicotrópicos da cannabis), mas a influência do sistema endocanabinoide se estende até mesmo à regulação do sistema imune.

Essas informações nos ajudam a entender o porquê de se cogitar com tanto entusiasmo o uso da cannabis para dezenas de condições clínicas com características muito distintas: se você tem receptores canabinoides espalhados pelo corpo, talvez possa ter algum benefício em diversos destes locais.

Ao mesmo tempo que isso abre possibilidades empolgantes para o uso medicinal da cannabis, torna-se também difícil conseguir especificidade suficiente para que haja efeitos terapêuticos benéficos e específicos, na ausência de efeitos adversos relevantes: seria altamente improvável que um complexo de substâncias capaz de afetar diversas partes do corpo humano ao mesmo tempo vá ter apenas efeitos benéficos, o tempo todo e em todo lugar.

Além disso, o sistema endocanabinoide participa também do neurodesenvolvimento, desde a fase embrionária, além de etapas de amadurecimento encefálico (como no final da adolescência e início da vida adulta). Dessa forma, há a possibilidade de impacto negativo no desenvolvimento neuronal com o uso de determinados derivados da cannabis.

É preciso estar ciente, portanto, que o uso da cannabis ou de alguns dos seus derivados isolados pode modular diversos sistemas e, teoricamente, provocar inúmeros efeitos, tanto positivos quanto negativos. O conhecimento farmacológico sobre os alvos farmacêuticos do THC ou do CBD nos ajuda a formular hipóteses plausíveis sobre os possíveis benefícios e riscos do uso medicinal da cannabis.

Contudo, esse conhecimento permite apenas formular hipóteses. Decisões clínicas no mundo real não podem se basear apenas em plausibilidade ou possibilidades hipotéticas. O que realmente informa e deveria orientar a prática profissional são probabilidades extraídas de testes empíricos válidos e bem conduzidos.

Pouca evidência

Segundo a FDA, para que algo se torne um medicamento, ele deve:

1. Ter seus componentes conhecidos quimicamente e com reprodutibilidade,

2. Contar com estudos sobre segurança adequados,

3. Contar com estudos clínicos controlados robustos o suficiente para demonstrar eficácia,

4. Ter amplo amparo na literatura científica.

Quando olhamos para a cannabis sob a luz desses critérios, percebemos que há uma distância entre as afirmações quase milagrosas que se encontram em fontes populares sobre a cannabis e a realidade científica correspondente.

Há grande potencial terapêutico dos canabinoides se nos pautarmos exclusivamente pelos mecanismos de ação hipotéticos e em sua plausibilidade biológica. Há também, de fato, um interesse científico crescente sobre o tema, o que faz com que haja disponível atualmente diversos artigos científicos sobre cannabis.

Contudo, pouquíssimos deles são ensaios clínicos de fase 3 (que correspondem à fase onde se demonstra cientificamente a provável eficácia de substâncias) e um número ainda menor deles corresponde a estudos de capacidade confirmatória suficientes para embasar uma decisão clínica.

Essa assimetria entre uma quantidade razoavelmente grande de artigos que falam sobre as diversas possibilidades terapêuticas da cannabis e a quantidade de artigos que testam de modo válido se essas possibilidades teóricas se confirmam no mundo real tem aberto espaço para o uso clínico empírico e subjetivo, na ausência de evidências adequadas que o sustentem.

Dor, epilepsia, esclerose múltipla, Parkinson, Alzheimer, glaucoma, câncer etc. A lista de condições para as quais a cannabis ou seus derivados têm sido indicados é extensa e parece apenas aumentar. Mas será que as evidências que deveriam sustentar essas indicações têm crescido na mesma proporção? Vamos aqui explorar algumas das evidências mais relevantes sobre o uso medicina da cannabis.

Uma revisão sistemática de ensaios clínicos sobre o uso de canabinoides em quadros de demência (sendo Alzheimer o tipo de demência mais comum), publicada em setembro do ano passado, apontou que há poucos estudos, e pequenos, nessa área e concluiu que, por enquanto, “se houver algum benefício de canabinoides para demência, os efeitos devem ser tão pequenos a ponto de não terem relevância clínica” e sugere que estudos mais robustos sejam conduzidos, em busca de conclusões mais precisas. Para as doenças neurodegenerativas com características motoras importantes, como Parkinson e Huntington, também não há, até o momento, evidências científicas de qualidade suficientes para guiar decisões clínicas.

Para fibromialgia, outra condição clínica para a qual cannabis tem sido prescrita, uma revisão sistemática concluiu que a evidência de ensaios clínicos é limitada e não endossa o emprego de canabinoides. Contudo, é possível encontrar relatos preocupantes de pessoas que não apenas receberam a prescrição de cannabis para fibromialgia, como a prescrição foi a de fumar a planta, fato que levanta uma ressalva farmacológica muito importante.

Parece existir um pensamento mágico disseminado de que, com tantos possíveis benefícios medicinais da cannabis, o ato de fumar a planta seria terapêutico para diversas condições de saúde. Porém, com raríssimas exceções (como o spray nasal de cetamina para depressão resistente), a via pulmonar é contraindicada para a administração de fármacos psicotrópicos.

Isso porque a absorção por esta via é muito rápida e favorece um aporte imediato e em grande concentração da substância no sistema nervoso central, podendo levar a efeitos muito intensos e pouco duradouros. Isso desfavorece o uso terapêutico seguro e aumenta o risco de intoxicações e de quadros de dependência. A esses riscos somam-se o dano pulmonar provocado pela inspiração de produtos da combustão parcial de uma planta – a fumaça.

Em 2018, uma revisão sistemática avaliou o uso de cannabis para o quadro de colite ulcerativa, uma doença inflamatória que acomete parte do intestino grosso . A conclusão foi a de que o benefício do uso de cannabis ou de canabidiol nesse quadro é incerto e de que não há evidências de que canabinoides possam colaborar com a remissão da doença.

No mesmo ano, outra revisão avaliou o uso no contexto da Doença de Chron, com resultados semelhantes: o benefício da cannabis é incerto e estudos com precisão estatística mais adequada precisariam ser feitos para que houvesse conclusões que pudessem embasar a prática clínica.

A ideia disseminada de que a cannabis é capaz de aumentar o apetite dos seus usuários recreativos (famosa “larica”) passou também a orientar o seu uso medicinal para situações de anorexia-caquexia, nas quais o aumento do apetite é terapeuticamente desejado. Contudo, embora alguns estudos mostrem um pequeno aumento de peso (de relevância clínica questionável) em pacientes com HIV/AIDS, não demonstram efeito superior a placebo na anorexia/caquexia associada ao câncer.

Até mesmo nos casos de glaucoma, uma das condições mais emblemáticas quando se começou a falar em cannabis medicinal, as evidências são conflitantes, não havendo demonstração clara de superioridade em relação a outros fármacos.

Em maio deste ano, uma revisão sistemática avaliou o uso de canabinoides para o tratamento sintomático da esclerose múltipla. Comparado ao placebo, nabiximols (uma mistura de THC e CBD padronizada) reduziu a severidade de alguns sintomas a curto prazo em pacientes acometidos pela doença.

Com relação à famosa indicação de canabidiol para epilepsia, há dois ensaios clínicos randomizados de qualidade aceitável que foram publicados no New England Journal of Medicine que apontam para benefício em síndromes epilépticas específicas, como na síndrome de Lennox-Gastaut. Ainda assim, considerando o tamanho pequeno da amostra, temos um grau de imprecisão e incerteza importante, como ficou mais evidente em uma revisão sistemática de 2021 .

Outro campo muito associado ao uso da cannabis medicinal é no controle da dor, em especial a dor neuropática. Entretanto, ensaios clínicos não conseguiram demonstrar uma boa relação entre benefício e riscos da sua utilização nesse contexto. Por isso, os protocolos clínicos que consideram o uso da cannabis classificam-na como terceira ou quarta opção, a ser usada apenas quando os tratamentos bem estabelecidos de primeira linha, como anticonvulsivantes e antidepressivos, falham.

Há ainda alegações de que a cannabis poderia ser utilizada no tratamento da depressão ou da ansiedade. Em geral, esse uso tem sido baseado em casos isolados ou em depoimentos de usuários. Ou seja, uma pessoa em franca crise de ansiedade utiliza a substância e, em seguida, relata que se sente melhor. É importante notar que este método de aferição de eficácia é altamente impreciso e não se relaciona com escalas e critérios clínicos validados no diagnóstico de transtornos psiquiátricos.

Qualquer substância que tenha caráter sedativo ou que reforce vias inibitórias do sistema nervoso central – incluindo o álcool – pode fazer um indivíduo ansioso relatar alívio agudo e momentâneo. Isso não significa que o consumo crônico da substância seja um tratamento adequado.

No espectro autista, um dos contextos mais associados ao uso do canabidiol e ao óleo de cannabis, as evidências também não endossam o que vem sendo feito na prática, fato que discuti exaustivamente em uma live.

Seria possível continuar contrastando as alegações populares com as evidências científicas relacionadas à cannabis para diversas outras condições, mas o ponto principal é que existe um abismo entre as inúmeras potencialidades hipotéticas do uso medicinal da cannabis e as determinações concretas não só de eficácia, mas também de benefício superior a risco.

É claro que o fato de as evidências científicas serem, no momento, insuficientes para embasar a maioria das indicações sugeridas no discurso popular não significa que não exista efeito. Mas significa que devemos tomar o cuidado de não inverter o ônus da prova: ou seja, de afirmar que um efeito positivo existe, e que esse benefício supera os riscos, sem que esses fatos tenham sido observados nas condições científicas adequadas.

A maioria dos estudos sobre uso medicinal da cannabis é exploratória. São trabalhos que geram hipóteses e mapeiam um campo ainda pouco estudado, mas que não servem como base sólida para a prescrição clínica.

Resumindo, ainda existe grande incerteza a respeito de onde está o equilíbrio entre a eficácia da cannabis (onde é razoável supor que exista) e relação a outros fatores cruciais como custo financeiro, custo clínico (risco de efeitos adversos relevantes) e custo comportamental (prometer curas e tratamentos que podem fazer com o que o paciente abra mão de tratamentos mais eficazes ou mais bem estabelecidos).

Ética e Regulamentação

Recentemente, uma grande polêmica foi levantada com diversas restrições impostas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) para a prescrição de cannabis ou seus derivados. Foi o suficiente para que uma batalha entre os polos citados neste artigo se estabelecesse nas redes sociais.

Questões jurídicas e de competência de cada órgão regulador/fiscalizador à parte, não é possível considerar que as decisões tomadas pelo CFM sejam necessariamente pautadas em evidências. Essa falta de confiabilidade se deve a inconsistências como restringir o uso da ozonioterapia (que não possui evidência de eficácia e tem baixíssima plausibilidade fisiológica) e ao mesmo tempo considerar homeopatia como especialidade médica (que não possui nem evidência de eficácia, nem um mínimo de plausibilidade fisiológica). Não é por acaso, portanto, que ao impor restrições ao uso da cannabis justamente durante uma pandemia na qual adotou postura conivente ao uso sem base científica de cloroquina e ivermectina, questionamentos sejam levantados.

Não cabe a mim, neste texto, participar deste cabo de guerra. Ao invertermos o ônus da prova e inventarmos uma panaceia onde existia apenas um campo de estudo promissor, o estrago já foi feito.

Quando uma intervenção passa a existir num contexto prático no qual já foi aceita e incorporada socialmente, uma série de vieses e distorções da percepção pública da questão entra em jogo – por exemplo, a tendência, constatada seguidas vezes na história da medicina, de pessoas que acreditam ter obtido, ou estarem obtendo, benefício da intervenção assumirem uma postura de proselitismo e de ativismo, tendo seus relatos reproduzidos, multiplicados e amplificados, enquanto os casos de aparente ineficácia, ou mesmo dano, não recebem quase nenhuma atenção. Gostaria apenas de lembrar dois pontos de caráter regulatório e ético, respectivamente.

O primeiro é a RDC nº 327/2019 da Anvisa, a norma atualmente em vigor no Brasil que dispõe sobre os produtos de cannabis e estabelece requisitos para comercialização, prescrição, dispensação, monitoramento e fiscalização desses produtos. E autorização sanitária não é registro definitivo de medicamentos.

O artigo 8° do capítulo II afirma que “A Autorização Sanitária dos produtos de cannabis terá prazo improrrogável de 5 (cinco) anos, contados após a data da publicação da autorização no Diário Oficial da União – DOU.” Ou seja, após esse prazo, se alguma empresa quiser continuar comercializando derivados de cannabis, ela deve registrá-los como medicamentos.

E para fazer isso, precisará apresentar ensaios clínicos que demonstrem a eficácia e segurança para as condições de saúde que se propõe a tratar. Além disso, o artigo 12 afirma que “É proibida qualquer publicidade dos produtos de cannabis”. O artigo 77 da referida norma afirma ainda que “esta Resolução deverá ser revista em até 3 (três) anos após a sua publicação”. Ou seja, neste ano o documento deve ser revisado à luz das demandas, discussões e evidências atuais.

O segundo ponto se trata do fato de que, independentemente de qualquer decisão arbitrária que o CFM adote, todo médico está subordinado ao código de ética da sua profissão. Esse é o limite da tão discutida autonomia médica. Vejamos o que diz o início do capítulo I do Código de Ética Médica:

“O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente. O médico não pode, em nenhuma circunstância ou sob nenhum pretexto, renunciar à sua liberdade profissional, nem permitir quaisquer restrições ou imposições que possam prejudicar a eficiência e a correção de seu trabalho”. Correto.

Mas isso justifica então poder fazer qualquer coisa? Basta ser capaz de ler mais de uma página do documento para saber que não. No mesmo capítulo encontramos o trecho: “A medicina será exercida com a utilização dos meios técnicos e científicos disponíveis que visem aos melhores resultados”. E elenca diversos limites para isso. Por exemplo, é vedado ao médico:

Causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência.

Praticar ou indicar atos médicos desnecessários ou proibidos pela legislação vigente no país.

Divulgar informação sobre assunto médico de forma sensacionalista, promocional ou de conteúdo inverídico.

Divulgar, fora do meio científico, processo de tratamento ou descoberta cujo valor AINDA NÃO ESTEJA EXPRESSAMENTE RECONHECIDO CIENTIFICAMENTE por órgão competente.

Sendo assim, autonomia médica é definida por normas e, portanto, não é irrestrita. Por fim, ninguém melhor do que Carl Sagan para trazer a ponderação científica necessária para esta desgastante discussão:

“No cerne da Ciência está um equilíbrio essencial entre duas atitudes aparentemente contraditórias: de um lado, a abertura a novas ideias, mesmo contrariando nossa intuição; e, do outro, o exame implacavelmente cético de todas as ideias, velhas e novas”. Estejamos abertos e despidos de quaisquer preconceitos para ideias promissoras de novos tratamentos, mas sejamos implacáveis na exigência do rigor científico que possa validá-los.

*André Bacchi é professor de Farmacologia do Curso de Medicina da Universidade Federal de Rondonópolis. É divulgador científico por meio dos podcasts Synapsando, Scicast, Spin de Notícias e Scikids

Publicado originalmente na Revista Questão de Ciência sob o título: “Cannabis medicinal: muita briga, pouca evidência”

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