Ciência e saúde

Bolsonaro e a promoção da ignorância

“Não é por acaso que observamos, por exemplo, que locais com maior proporção de apoiadores de Bolsonaro também tiveram uma maior mortalidade por COVID-19

Por Cesar Baima*

Desinformação. Na acepção mais estrita da palavra, a composição e propagação de informações sabidamente falsas ou enganosas com o objetivo de influenciar indivíduos, grupos ou a opinião pública em prol de interesses estratégicos, políticos, ideológicos, econômicos ou mesmo pessoais. Não é de hoje que pessoas, empresas, instituições e governos mentem deliberadamente, seja para se proteger, atacar, desacreditar ou atrapalhar opositores e inimigos, impulsionar suas agendas ou obter algum tipo de ganho ou lucro.

Exemplos históricos não faltam. Das operações dos Aliados que ajudaram a convencer a cúpula nazista de que a invasão da Europa se daria pela região de Calais na Segunda Guerra Mundial, à luta da indústria do petróleo para primeiro negar os malefícios para a saúde pública da adição de chumbo aos combustíveis, e depois o aquecimento global e as mudanças climáticas, passando pela indústria do tabaco e a relação do fumo com o câncer.

Mas se até pouco tempo atrás as iniciativas de desinformação costumavam ser trabalhosas e lentas, hoje, com a internet e as redes sociais, as mentiras viajam à velocidade da luz, atingindo públicos-alvo bem definidos com precisão cirúrgica, ou como armas de destruição em massa da verdade, credibilidade ou confiança do público em pessoas, políticas ou instituições. Não é por acaso que nos últimos anos vimos a ascensão de diversos movimentos anticiência, do apenas aparentemente inofensivo terraplanismo ao claramente perigoso antivacina, assim como o avanço de ideologias radicais, notadamente à extrema direita, e o fundamentalismo religioso.

Para tentar entender este fenômeno, no entanto, também surgiu uma nova ciência. É a chamada “Agnotologia”, o estudo da produção e promoção da ignorância, de como pessoas, grupos, comunidades ou mesmo sociedades inteiras podem se manter ou são mantidas ignorantes ou alheias de certas informações e fatos, e dos interesses a que isso serve. Campo que já tem seus pesquisadores no Brasil, como Nayla Lopes, doutoranda em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Como parte de sua tese, Lopes busca estabelecer uma ligação entre o negacionismo na pandemia de COVID-19 e uma promoção deliberada da ignorância no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro.

“Meu objetivo é estudar o comportamento negacionista das pessoas em relação à pandemia”, diz. “Antes eu tinha a impressão que haveria um limite neste comportamento, que garantir a sobrevivência de si e de quem você se importa superaria este negacionismo. Mas o que vimos foi este limite sendo ultrapassado seguidamente. As pessoas arriscavam a própria vida e de quem se importavam no meio de uma das maiores crises sanitárias da História”.

Questão de intenção

Segundo Lopes, um dos maiores desafios da agnotologia é determinar a intencionalidade da propagação da ignorância. Para sorte dela – e azar do Brasil -, no entanto, o próprio ex-presidente não se furtou em oferecer evidências disso com relação à pandemia, com impactos mensuráveis no número de casos e mortes por COVID-19 no país.

Em mais de uma ocasião, por exemplo, Bolsonaro confessou que foi “o único chefe de Estado do mundo” a ter ido contra as principais recomendações de especialistas e autoridades sanitárias para evitar a disseminação da doença, como o distanciamento social. Ao mesmo tempo, não faltam amostras das vezes que promoveu aglomerações, algumas delas nos piores momentos da pandemia no Brasil, quando o país registrava milhares de mortes por dia. Eventos em que também deixou clara sua oposição ao uso de máscaras, outra medida não farmacológica fundamental para tentar controlar a propagação do vírus.

“Ao dizer repetidamente que foi ‘o único chefe de Estado’ que foi contra estas medidas não farmacológicas e usar isso como uma espécie de ‘medalha de honra’, Bolsonaro só dá mais provas de sua intenção”, considera Lopes.

Também faz parte disso o discurso de minimização da crise sanitária, como as muitas vezes em que o ex-presidente se referiu à COVID-19 como uma “gripezinha” que poderia ser facilmente curada por um inexistente “tratamento precoce”.

“Quem espera que o presidente de um país vá mentir descaradamente?”, questiona a pesquisadora. “Este tipo de minimização por uma pessoa que o público tem como referência de informação e liderança alimenta uma tendência de se tranquilizar e ficar menos alerta no nível individual. O que, no caso da pandemia, deixou as pessoas ainda mais vulneráveis à doença”.

Ações que tiveram impactos diretos, e trágicos, nas estatísticas da pandemia no Brasil:

“Não é por acaso que observamos, por exemplo, que locais com maior proporção de apoiadores de Bolsonaro também tiveram uma maior mortalidade por COVID-19“.

Além disso, o ex-presidente não agiu sozinho. Não foram raras as vezes que Bolsonaro, integrantes do seu governo ou apoiadores arregimentaram supostos especialistas para tentar legitimar seu discurso negacionista, numa tática típica de desinformação e mais uma evidência de intencionalidade.

“Quando se começou a falar de agnotologia, os estudos eram sobre a indústria do tabaco e sua estratégia de disseminar incerteza e dúvidas sobre a relação de fumo e câncer, os ‘mercadores da dúvida’ (referência ao título do livro dos historiadores da ciência Naomi Oreskes e Erik M. Conway sobre o assunto)”, lembra a pesquisadora. “E os especialistas têm um importante papel na construção deste discurso. A indústria do tabaco financiou estudos para semear dúvidas sobre o consenso científico, e a indústria do petróleo foi na mesma linha com as mudanças climáticas, numa formatação que busca trazer legitimidade científica para o discurso agnotológico. Na pandemia aqui no Brasil tivemos, por exemplo, os chamados ‘Médicos pela Vida’, grupo que ganhou notoriedade receitando inúteis ‘kits Covid’ e defendendo inexistente ‘tratamento precoce'”.

Neste ponto, Lopes destaca que se a agnotologia é a estratégia, o processo de promoção da ignorância, a desinformação é uma de suas principais ferramentas. E ela pode vir de muitas formas, não necessariamente mentiras, como a falácia do espantalho ou a evidência anedótica, provocando confusão na mente do público.

“Não é preciso mentir para apresentar um enquadramento negacionista da realidade”, ressalta. “Na pandemia, por exemplo, Bolsonaro disse que tomou cloroquina e melhorou da COVID-19. Mas ele poderia muito bem não ter tomado nada e melhorado também. Não é mentira que ele melhorou, mas muda o foco da questão. A experiência pessoal não é necessariamente mentirosa, mas é incompatível com o método científico. Tudo parte da tática de semear dúvida, e assim a ciência é desacreditada pelos agentes agnotológicos”.

Evidência documental

Outro ponto importante do trabalho, conta Lopes, é a coleta de evidências documentais da promoção deliberada da ignorância por estes agentes agnotológicos. Nos casos das indústrias do tabaco e do petróleo, o distanciamento histórico favorece o acúmulo de conhecimento sobre a relação de seus produtos com o câncer e as mudanças climáticas, respectivamente, e sua atuação na tentativa de abafar ou confundir a questão. A pandemia de COVID-19, no entanto, é um evento recente, o que a princípio dificultaria isto.

Mais uma vez, porém, o ex-presidente, os integrantes de seu governo e seus apoiadores facilitaram o trabalho da pesquisadora, deixando muitos rastros de ações negacionistas. Lopes lembra que, se na primeira onda da pandemia ainda era possível ter dúvidas sobre qual a melhor estratégia para enfrentar a crise sanitária, a partir de meados de 2020 e início da segunda onda da COVID-19 já estava estabelecido que a cloroquina não funcionava contra a doença, e a busca por uma suposta “imunidade de rebanho” não só era ilusória como perigosa, com potencial de provocar milhares de mortes e o colapso dos sistemas de saúde.

“São mais de mil documentos de alerta ignorados pelo governo Bolsonaro“, diz. “A partir da segunda onda já era possível distinguir o que funcionava ou não na prevenção da doença. Mesmo sem vacina, já era possível amenizar a situação com medidas não farmacológicas. As informações estavam disponíveis. Tanto que Boris Johnson no Reino Unido, e até (Donald) Trump, nos EUA, de certa forma corrigiram o rumo. Já Bolsonaro insiste até hoje que estava certo, mesmo diante dos números trágicos da pandemia no Brasil”.

A CPI da Pandemia no Senado também ajudou no acúmulo de evidências documentais sobre as ações negacionistas do governo federal e seus apoiadores durante a crise sanitária. Entre elas, Lopes cita a tentativa de alteração da bula da cloroquina, discutida em reunião em pleno Palácio do Planalto, e a campanha “O Brasil não pode parar”, também gestada e posta em prática pelo gabinete presidencial via a Secretaria de Comunicação da Presidência (Secom).

“A ideia de tudo isso era induzir ao erro e confundir o público. Não tem como dizer que não era intencional”, avalia.

Outra amostra disso, acrescenta a pesquisadora, foi o chamado “apagão de dados” da COVID-19 promovido pelo governo federal. Ainda em junho de 2020, por exemplo, o Ministério da Saúde primeiro deixou de divulgar números consolidados da pandemia no país, e depois, obrigado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) a voltar a fornecer as informações, manipulou a estrutura dos relatórios epidemiológicos para reforçar o discurso negacionista do governo, como com a decisão de destacar o número de recuperados e minimizar os óbitos. Decisões que levaram os veículos de imprensa brasileiros a se juntarem em um consórcio para apurar as informações e garantir sua credibilidade junto ao público.

“O controle das informações é outro aspecto desta ação. Não só o enquadramento, mas o provimento de informações básicas sobre a pandemia foi negligenciado pelo governo Bolsonaro”, afirma. “Mesmo que as pessoas não quisessem se guiar pelo que as lideranças políticas falavam, elas tinham dificuldade para se informar da realidade da pandemia no país para poder tomar suas próprias decisões”.

Diante disso, Lopes acredita que terá evidências suficientes para sustentar a tese agnotológica de promoção da ignorância no governo Bolsonaro que ajudou a alimentar o negacionismo de parte da população brasileira frente à COVID-19.

“Cloroquina, tratamento precoce, imunidade de rebanho, as pessoas não tiveram estas ideias sozinhas”, considera. “Juntando tudo, temos um cenário muito provável de intencionalidade agnotológica da parte de Bolsonaro, seu governo e apoiadores com relação à pandemia”.

Originalmente publicado na revista Questão de Ciência

*Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência

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