“Atuação policial sobre o mercado de drogas realimenta a violência”. A afirmação é de José Luiz Ratton, sociólogo, professor-doutor da UFPE e especialista em Segurança Pública
Por AD Luna
Imagem de Free-Photos por Pixabay
“Atuação policial sobre o mercado de drogas realimenta a violência”. A afirmação é de José Luiz Ratton, sociólogo, professor-doutor da UFPE e especialista em Segurança Pública. Ele foi o convidado da edição #20 do Interdependente – música e conhecimento, que foi veiculada originalmente no dia 14 de outubro de 2017.
Na parte musical, músicas de Jorge Ben Jor, Gilberto Gil e Titãs, sugeridas pelo próprio pesquisador. Abaixo, link com íntegra do programa e trechos transcritos da entrevista.
Isso é uma pergunta complexa que exige uma resposta complexa. Existe um conjunto de fatores que explica padrões tão elevados de violência no Brasil, que são similares a de outros países da América Latina – talvez o continente mais violento do mundo.
Se a gente pensar, por exemplo, em Brasil, Venezuela, Colômbia e México juntos, [eles] são responsáveis por 25% dos homicídios do mundo. E isso seguramente tem a ver com a história do país, fundada sob a escravidão…
Acho que é importante pensar que a ocupação do Brasil pelos portugueses significou a introdução de processos de natureza absolutamente violenta contra as populações indígenas e, ao mesmo tempo, um processo profundamente traumático e muito amplo de produção da escravidão.
O país é fundado sob a violência e, nesse estado, é possível pensar que a construção histórica do país traz junto com ela um Estado que é seletivo, é um Estado ao tempo violento mesmo.
A própria garantia de uma espécie de paz para as elites locais sempre foi feita ao custo de processos de natureza repressiva muito grandes e um Estado que não se construiu de forma universal inclusiva, sempre foi seletivo, produtor de desigualdade. Inclusive desigualdade no plano jurídico, no plano do reconhecimento civil das pessoas e na garantia do direito à vida.
Temos que pensar que, no século 20, as transformações econômicas pelas quais o Brasil passa também são transformações que são muito aceleradas. O modelo de urbanização é desorganizado, excludente, e que traz para as grandes cidades brasileiras uma cultura da honra, da masculinidade, do conflito resolvido através da violência pra manutenção da reputação.
Mais recentemente, a gente pode observar um processo de articulação de todo esse enraizamento social da violência com os modernos mercados de drogas – que vêm acompanhados dos modernos mercados de armas. Então, num contexto proibicionista, a chegada de mercados ilegais de drogas vem acompanhada de mercados de armas também vendidas ilegalmente. Daí nós temos a complexificação dessa situação e a incapacidade histórica do Estado brasileiro de lidar com esse problema.
[De forma geral, a violência] é praticada por homens, jovens, pobres, negros das periferias contra homens, jovens, pobres, negros das periferias. É por isso que, de certa forma, se mantêm invisíveis… Nós temos um padrão de violência contra a mulher que é muito elevado também. Não chega aos patamares masculinos, mas é muito elevado também se compararmos mundialmente.
Então, nós temos uma sociedade que se moderniza de uma forma muito singular. É uma forma de modernidade violenta, é um tipo de democracia violenta, é pluralismo político violento.
É como se o processo civillizatório de internalização de normas, de controles dos afetos, das emoções não tivesse se instalado aqui e o Estado não tivesse desempenhado esse papel que em outros lugares conseguiu controlar e reduzir a violência.
O processo de transformação do Brasil num país menos violento envolve tanto participação do Estado quanto da sociedade.
No caso das instituições estatais, temos um déficit muito grande. Sucessivas administrações, no plano federal, não têm tratado do problema da violência como uma questão central no Brasil.
Os estados têm trabalhado essa questão de uma forma muito convencional, com respostas meramente policiais e os municípios também têm se omitido muito.
Então essa é uma questão que envolve a transformação a violência num problema central para a agenda pública brasileira. Um país que tem quase 60 mil pessoas assassinadas por ano não pode se dar ao luxo de não tratar isso como relevante.
É algo que precisa ser abordado por meio de políticas públicas complexas. E que envolvem desde mecanismos de prevenção social do crime e da violência, prevenção específica, tanto no curto, no médio e no longo prazo.
Uma prevenção geral, que diminua as chances de ocorrência da violência para todos, mas também prevenção específica que estabelece mecanismos de proteção pra grupos mais vulneráveis, como mulheres, jovens, populações LGBT, idosos. [É preciso] pensar em programas de prevenção direcionados aqueles que já se envolveram com violência. Seja como vítima ou seja como acusado, egresso do sistema prisional. Isso praticamente não existe no Brasil hoje.
Por outro lado, a gente precisa ter uma forma de atuação no plano das polícias, do sistema de justiça criminal que seja um plano que sinalize, de uma forma mais universalista, o fim da impunidade. Acho que a questão da impunidade no Brasil é muito relevante.
Nós precisamos de uma atuação policial que foque principalmente nos crimes contra a vida, nos homicídios, nas tentativas de homicídios, nos crimes que envolvem a possibilidade de dano físico às pessoas e aí é preciso um tipo de atuação policial que seja democrático. Investigação de homicídio, de tentativa de homicídio universalizada, um patrulhamento policial em que a polícia esteja mais próxima da população e não apenas em áreas, digamos, mais afluentes ou mais ricas.
Então nós precisamos construir estratégias de coersitividade, digamos assim, que sejam mais inteligentes que as atuais que não foque, por exemplo, no mercado de drogas, que realimenta a violência. A atuação policial sobre o mercado de drogas realimenta a violência.
A atuação policial precisa estar voltada para a proteção da vida das pessoas, independente de isso ocorrer no mercado de drogas ou fora dele. Ao mesmo, o sistema de justiça precisa garantir o acesso à justiça a amplos setores da população que não têm acesso.
No contexto em que o Estado é fraco… estou falando do Estado, o sistema de justiça, em que a população não tem possibilidade de resolver seus conflitos através da mediação pública, da justiça estatal.
Parte dessa pessoas opta por resolver seus problemas de forma pessoal e violenta. Então precisamos garantir a universalização da justiça como uma forma de resolução de conflito.
E aí nós precisamos de um pacto nacional em torno disso. Não temos um pacto federativo na área de segurança pública como existe na área de saúde, na educação, por exemplo. (…) O Governo Federal e os municípios acabam se omitindo de atuarem nessa área.
O Governo Federal não coordena, os governos municipais não participam, os estados muito sobrecarregados mas ao mesmo tempo muito convencionais, muito conservadores na forma de lidar com o tema da violência.
Temos uma polícia que é mal preparada, violenta, que vem das classes populares mas não consegue lidar com os conflitos nas áreas populares. Temos um judiciário elitista, um Ministério Público também elitista que não controla a atividade policial.
Nós não temos programas de prevenção da violência, as defensorias públicas muito frágeis e mal pagas. Então estamos numa situação que é complicada.
Pernambuco tradicionalmente é um estado violento, sempre foi um estado muito violento. Sempre esteve entre os estados mais violentos do país. Se a gente tomar, nos últimos 40 anos, quando a gente tem estatísticas da área de saúde confiáveis…
Desde o final dos anos 70 que Pernambuco se encontra entre os três estados mais violentos do país. E em meados dos anos 2000, surge uma estratégia de segurança pública, que estava focada na redução de homicídios e tentativas de homicídios e que conseguiu construir uma capacidade de governança das polícias, especialmente focadas na universalização da investigação de homicídios e na democratização do patrulhamento.
Isso produziu um resultado imediato num estado que tinha quase 4700 mortes por ano, em 2006. Mas isso não foi seguido pela construção de processos de prevenção da violência.
Então essas áreas onde os homicídios começaram a cair não foram ocupadas com projetos de prevenção social que impedissem a reprodução da violência ou criasse alternativas para que aqueles processos sociais ali instalados. E aí, com o decorrer dos anos, aquele ganho obtido com a identificação de grupos armados que matavam de forma contumaz, nessas áreas mais vulneráveis, deixa de obter resultado.
Perde-se a governança sobre as polícias, a substituição de uma liderança importante por conta de um projeto nacional, depois pelo desaparecimento [Nota: referência ao ex-governador de Pernambuco e então candidato a presidente Eduardo Campos, morto em agosto de 2014, num acidente de avião]. Acaba-se perdendo a capacidade de governança das polícias. [Se interrompeu a capacidade] de produzir reformas no sistema prisional, no sistema de medidas socioeducativas, na própria transformação das polícias.
[Acabou-se] sabotando silenciosamente aquela iniciativa que havia sido interessante e importante, o Pacto pela Vida, mas que era apenas o início de um processo que precisava durar muitos e muitos anos pra que fosse bem sucedido.
Então nós temos esse retorno dos grupos armados, que estavam produzindo violência historicamente em Pernambuco e na situação de agravamento que pode ser muito pior do que os anos que a gente observou. Este anos, estamos próximos de ter uma taxa de homicídios maior do que a de 2006, que teria sido uma das maiores da história de Pernambuco.
Os mercados de drogas funcionam no mundo todo, de forma regular e lucrativa, em alguns lugares eles são mais violentos e em outros, menos. Nos lugares onde a polícia ou a justiça tenta intervir de forma muito direta, eles são mais violentos.
Então se a gente observar o mercado de drogas na Alemanha, Inglaterra, Canadá é tão lucrativo ou muito mais lucrativo do que o mercado de drogas no Brasil.
Mas a interferência da polícia ou da justiça é muito baixa. Temos que pensar é que, do ponto de vista geral, o Estado é incapaz de lidar com mercados ilegais de drogas. É mais inteligente tornar esse um problema secundário e abordá-lo de uma outra forma.
O que interessa ao Estado é prevenir a ocorrência de mortes violentas ou de danos à saúde das pessoas. Então, o Estado, através da polícia e da justiça, precisa entrar nesses espaços, e em qualquer outro espaço, quando há ameaça à vida das pessoas.
Porque aí sinaliza para o mercado de drogas que não é bom negócio matar as pessoas, não é bom negócio torturar as pessoas, não é bom negócio produzir danos à vida das pessoas.
E como este é um negócio baseado em lucro, como qualquer outro negócio capitalista, a resposta de quem trabalha neste mercado sempre tem a ver com a capacidade do Estado de intervir ali.
É muito mais inteligente que o Estado imponha custos para a atividade violenta dos mercados de drogas sem necessariamente lidar com a regulação do varejo.
Quando a polícia entra no varejo de drogas, ela sempre realimenta a violência ali dentro, pela apreensão de drogas, pelos mecanismos de convivência com os grupos criminosos.
Então uma saída inteligente, nesse marco legal que a gente tem agora, é priorizar os crimes contra a vida e esquecer a atividade do mercado de drogas. Isso não seria prevaricação, significa apenas definir prioridades em relação à possibilidade da convivência social. A garantia de uma convivência menos violenta significa menos intervenção, e intervenção apenas de forma seletiva: apenas quando houver ameaça à vida e à integridade física das pessoas.
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