No livro “Em nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no islamismo”, a pesquisadora Karen Armstrong detalha as origens do fundamentalismo cristão
Por AD Luna
Considerada uma das maiores estudiosas de assuntos religiosos no mundo, a ex-freira Karen Armstrong lançou, em 2001, o livro “Em nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no islamismo” (Companhia das Letras).
A obra, com 583 páginas, traz farto material sobre esse fenômeno que vem ganhando força em diversos lugares do planeta. Ao contrário do que muita gente pensa, o fundamentalismo é um movimento social moderno e não “medieval”.
Entre alguns de seus diveros escritos, estão publicações elogiadas e recomendadas por historiadores e estudiosos da religião de vários países, a exemplo de “Em defesa de Deus” (2011), “A Bíblia: uma Biografia” (2007), “Maomé: uma biografia do profeta” (2002), entre muitos outros.
Na apresentação do “Em nome de Deus”, a inglesa, nascida em 14 de novembro de 1944, escreve:
“Um dos fatos mais alarmantes do século XX foi o surgimento de uma devoção militante, popularmente conhecida como ‘fundamentalismo’, dentro das grandes tradições religiosas.
Suas manifestações são às vezes assustadoras. Os fundamentalistas não hesitam em fuzilar devotos no interior de uma mesquita, matar médicos e enfermeiras que trabalham em clínicas de aborto, assassinar seus presidentes e até derrubar um governo forte.
Os que cometem tais horrores constituem uma pequena minoria, porém até os fundamentalistas mais pacatos e ordeiros são desconcertantes, pois parecem avessos a muitos dos valores mais positivos da sociedade moderna.
Democracia, pluralismo, tolerância religiosa, paz internacional, liberdade de expressão, separação entre Igreja e Estado – nada disso lhes interessa”.
Como o próprio título já indica, o livro trata do fundamentalismo presente nas três maiores religiões monoteístas do mundo. Mas aqui vamos nos focar no cristianismo. Ainda assim, muita coisa deixará de ser abordada, por questões de síntese e espaço.
Origens do termo fundamentalismo
Segundo Karen Armstrong informa no seu livro, o termo “fundamentalismo” foi inicialmente utilizado por cristãos protestantes norte-americanos, no início do século 20. Eles passaram a se denominar “fundamentalistas” para se distinguir dos chamados “cristãos liberais” – estes, para os fundamentalistas, trabalhavam para distorcer a fé.
Um dos marcos dessa “distorção da fé” se deu, em 1909, quando Charles Eliot, professor emérito da Harvard University, pronunciou um discurso nomeado como “O futuro da religião”. Nele, o acadêmico dizia que a religião do porvir teria apenas um mandamento: “o amor a Deus, expresso no serviço concreto prestado ao próximo”, expõe Karen.
O documento enumera outros pontos que assustaram os religiosos mais conservadores. Eliot afirmava, por exemplo, que cristãos não teriam mais o monopólio da verdade, porque esta também estaria presente nas ideias de cientistas, secularistas e de pessoas de outras religiões.
Afinal, na visão dele, todas elas destacavam a importância do cuidado às pessoas mais vulneráveis e a justiça social. O dogma seria um problema, por existir dentro de uma sociedade que valorizaria a verdade racional ou cientificamente demonstrável.
Nos círculos universitários, cristãos progressistas defendiam cada vez mais a interpretação bíblica embasada num contexto científico, histórico e não confessional.
Diante dessa realidade que se descortinava na época, protestantes conservadores reagiram. Para eles, era preciso “voltar às raízes e ressaltar o ‘fundamental’ da tradição cristã”.
O “fundamental”, no caso, seria a interpretação literal da Bíblia e a aceitação de determinadas doutrinas básicas. Assim, em 1910, presbiterianos ligados à universidade de Princeton publicaram uma lista com cinco dogmas que consideravam primordiais:
1 – A infalibilidade das Escrituras
2- O nascimento virginal de Jesus
3- A remissão dos pecados pela crucificação
4- A ressurreição da carne
5- A realidade objetiva dos milagres de Cristo
Em seguida, Lyman e Milton Stewart, dois milionários do petróleo, fundadores do Instituto da Bíblia de Los Angeles (hoje conhecido como Biola University) , publicaram uma série de 12 panfletos intitulada “The fundamentals” (Os fundamentos).
Cerca de três milhões de unidades de cada impresso foram enviados, gratuitamente, para professores, estudantes de teologia e pastores dos Estados Unidos. Naquele período, porém, eles não causaram tanto interesse e não apresentavam um teor radical.
A ex-freira e pesquisadora de religiões Karen Armstrong. Foto: reprodução internet
O medo da “dominação do Anticristo”
Foi durante a eclosão da Primeira Guerra Mundial que, nas palavras de Karen Armstrong, o “protestantismo conservador se apavorou e tornou-se fundamentalista”.
Informados a respeito das grandes destruições e carnificina em alta escala causadas pelo conflito, eles passaram a interpretar determinados acontecimentos do período como provas da iminente dominação do Anticristo.
Esses fatos foram tomados como prenúncios do fim do mundo, fortes sinais de que as profecias do Livro do Apocalipse estavam por realizar-se. Diante de tal ameaça, protestantes conservadores realizaram, durante o tempo do conflito (1914 a 1918), três importantes Conferências sobre Profecia e Bíblia.
O comunismo e o apocalipse
Alguns exemplos: por conta da Revolução Bolchevique (1917) e da implementação do comunismo ateu, a Rússia passou a ser vista como “o poder que vem do Norte”, o qual atacaria Israel antes do chamado Armagedon.
Com o fim da guerra, a criação da Liga das Nações (1920), que daria base para a formação da ONU, foi vista pelos religiosos conservadores como a realização de previsão apocalíptica de que um revivido Império Romano se formaria.
A “ameaça vermelha” e o macartismo
Mais tarde, com a criação da Cruzada Cristã pelo pregador Billy James Hargis, fundamentalistas cristãos passaram a denunciar uma “demoníaca” influência da União Soviética nos Estados Unidos.
Hargis apregoava que professores esquerdistas, a imprensa liberal e até a Suprema Corte (o STF americano) estavam em conluio para tornar os Estados Unidos uma nação “vermelha”.
Não a toa, muitos religiosos conservadores passaram a se alinhar, na década de 1950, com a cruzada do senador Joseph McCarthy (daí o termo macartismo), que perseguiu e denunciou diversas personalidades e cidadãos comuns classsificados como “comunistas”.
Fundamentalismo islâmico e judaico
Como se vê, o termo surgiu num contexto cristão e passou a ser atribuído a outras tendências do judaísmo e do islamismo.
O fundamentalismo nas três religiões monoteístas possui diferenças, porém, de acordo com Armstrong, guardam uma semelhança fundamental no que se refere às suas origens: “Raramente surge como uma luta contra um inimigo externo; em geral começa como uma luta interna travada pelo tradicionalistas contra os próprios correligionários que, a seu ver, estão fazendo demasiadas concessões ao mundo secular”.
Ameaça à tradicional família americana
Em fins dos anos 1970 e início da década seguinte, fundamentalistas cristãos começaram a se alarmar com avanços progressistas na sociedade americana e em outras partes do planeta. O mundo estaria condenado, mas os cristãos poderiam salvá-lo com a Palavra de Deus.
Para isso, era preciso evangelizar o maior número possível de pessoas, principalmente as norte-americanas. Afinal, desde o tempo da colonização, religiosos transportaram a ideia de “nação escolhida por Deus” para os Estados Unidos.
No livro “Time Gospel Hour”, de 1980, o pregador Jerry Falwell lançou a pergunta “Existe esperança para nosso país?”, respondendo em seguida:
“Acho que sim. Acredito porque cremos em Deus e oramos; porque, nós, cristãos, lideramos a luta para proibir o aborto, que é um crime por encomenda; porque nos posicionamos contra a pornografia, o tráfico de drogas, a ruptura da tradicional família americana, a promoção de casamentos homossexuais; porque apoiamos uma defesa nacional forte para que este país sobreviva e nossos filhos conheçam a América que conhecemos […] Acho que existe a esperança de que Deus, mais uma vez, abençoe a América”.
O ódio fundamentalista contra gays e feministas
Integrantes de movimentos religiosos conservadores como a Maioria Moral e Nova Direita Cristã, inclusive mulheres, passaram a criticar fortemente o feminismo. Este era considerado como “doença”, “filosofia de morte” e responsável por afetar a masculinidade de muitos homens, deixando-os inseguros .
No livro “The act of marriage: the beauty of sexual love” (1976), a escritora Beverley LaHaye dizia que muitos homens achavam-se impotentes e confusos, não sabendo mais como satisfazer sexualmente as esposas. A culpa recaia sobre a então crescente autoafirmação feminina, responsável pela “feminização” e “castração” masculina.
Quanto à homossexualidade, os fundamentalistas eram quase unânimes em identificá-la com a pederastia (relacionamento sexual entre um homem e um menino). A causa dessa “epidemia” resultava de lares destruídos pelo “humanismo secular”.
Um Jesus implacável, armas e atuação política
Muitos pregadores passaram a reinterpretar a imagem de Jesus de Cristo e do cristianismo, tido como uma religião de valores femininos, focada no perdão, piedade e ternura.
Assim, figuras como Edwin Louis Cole passaram a tratar Jesus como uma personalidade implacável, “que derrotou Satã”.
Então era preciso que cristãos se tornassem agressivos, conforme defendeu outro autor, Tim LaHaye, no livro “Battle for the family”. O pessoal da Maioria Moral, inclusive, desejava que a legislação que controlava a posse de armas fosse mais flexível.
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Os programas de rádio e televisão produzidos pela Maioria Cristã passaram também a defender uma maior participação de religiosos nas eleições, como candidatos ou eleitores.
Pretendentes a cargos públicos não religiosos começaram a ser bombardeados com textos de grupos cristãos atacando aqueles que defendiam políticas “indesejáveis” a respeito da limitação de posse de armas, ampliação de fundos para clínicas de aborto ou igualdade de direitos. Ser contra a religião nas escolas e a favor dos direitos dos gays era ser contra a família, a pátria e contra Deus.
A “escola sem partido” dos fundamentalistas cristãos dos Estados Unidos
Até os dias atuais, cristãos fundamentalistas norte-americanos trabalham para impor suas visões particulares sobre a educação. Diversas tentativas têm sido feitas para forçar o ensino do criacionismo em escolas públicas.
Karen Armstrong relata algumas vitórias obtidas por fundamentalistas durante as décadas de 1970 e 1980. Em janeiro de 1982, por exemplo, cristãos da cidade de St. David´s, no estado do Arizona, conseguiram banir de escolas livros de Mark Twain, John Steinbeck, Joseph Conrad, entre outros.
No ano seguinte, uma campanha foi organizada no Texas com o intuito de “reintroduzir Deus nas escolas”. A ideia era reprovar posturas liberais evidentes em (bom lembrar que, nos Estados Unidos, o termo liberal pode ser tomado como sinônimo de esquedista):
“questões abertas que levam os alunos a tirar conclusões próprias; declarações sobre outras religiões, que não o cristianismo; declarações concebidas para refletir aspectos positivos dos países socialistas ou comunistas (por exemplo, que a União Soviética é o maior produtor de mundial de determinados cereais); qualquer aspecto da educação sexual que não o incentivo à abstinência; declarações que enfatizam contribuições feitas por negros, índios, americanos-mexicanos ou feministas; declarações favoráveis aos escravos americanos e desfavoráveis a seus senhores; e declarações favoráveis à teoria da evolução, a menos que se conceda o mesmo espaço teoria da criação” (criacionismo).
Os medos básicos dos fundamentalistas cristãos
O casal Mel e Norma Gabler, que liderou a campanha, foi derrotado nos tribunais. Porém, temendo baixas nas vendas, os próprios editores tomaram a iniciativa de mudar textos dos livros.
Karen Armstrong observa que esse movimento evidenciou o que seriam os principais temores dos fundamentalistas em relação à cultura moderna: medo de colonização, de especialistas, de incerteza, de influência estrangeira, de ciência e de sexo.
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Karen Armstrong, “uma das principais autoridades em história das religiões na atualidade” (revista Veja), analisa os movimentos fundamentalistas que se desenvolveram nas três religiões monoteístas: judaísmo, cristianismo e islamismo.
Seu ponto de partida é o ano de 1492, data em que ocorreram episódios históricos decisivos para cristãos, muçulmanos e judeus.
Discorrendo em estilo claro e ágil, apoiando-se numa documentação excepcional e em ampla bibliografia, Armstrong constrói uma obra indispensável aos que desejam compreender o impacto do fundamentalismo sobre a economia, a política e a sociedade em geral. (Texto da editora)
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