O acesso fácil a armas de fogo eleva o risco de suicídio especialmente para homens – já o de ser vítima de homicídio aumenta de modo significativo para mulheres
Por Carlos Orsi*
Suponha que eu lhe diga que aviões não transportam pessoas, pessoas transportam pessoas. Afinal, o que é um avião sem uma equipe de apoio que o abasteça e faça sua manutenção e, claro, sem o piloto? Apenas uma pilha de metal inerte. Suponha ainda que eu lhe diga que ninguém precisa de um avião para viajar: qualquer pessoa realmente determinada a ir de um ponto A a um ponto B – de Porto Alegre a Manaus, digamos – pode perfeitamente fazê-lo de carro, barco ou mesmo a pé.
Pensando bem: a rigor, nada impede que o piloto e a equipe de apoio da companhia aérea construam uma liteira e se revezem carregando nosso passageiro obstinado sobre os ombros, Brasil adentro, tornando o avião completamente irrelevante.
Se o argumento do par de parágrafos acima lhe parece capcioso, meio maroto (ou de todo absurdo) é porque é: ele deliberadamente exclui questões fundamentais de oportunidade (a pessoa “determinada” a ir a Manaus quando um avião está disponível pode se sentir desestimulada se lhe for oferecida uma liteira) e eficácia (o avião transporta mais pessoas, melhor e muito mais rápido).
No entanto, muita gente supostamente racional parece encantada com a frase “armas de fogo não matam pessoas, pessoas matam pessoas”, que sofre exatamente dos mesmos problemas que a falácia do avião: é possível matar gente sem dar tiros, mas com tiros é muito mais fácil e eficaz.
E, do mesmo modo que o sujeito que desiste de ir a Manaus quando percebe que vai ter de andar, e que o trajeto vai levar uns 80 dias, caminhando 12 horas por dia (segundo o Google Maps), a falta de facilidade e de eficácia pode fazer toda a diferença na hora de alguém resolver ter uma crise de ciúmes, ou se vingar dos bullies da escola.
Mesmo quando o assassino está realmente, estupidamente, irredutivelmente determinado, a questão da eficácia faz diferença para quem interessa (as vítimas): em 14 de dezembro de 2012, Adam Lanza invadiu a escola de Sandy Hook, no estado de Connecticut, nos Estados Unidos, com um rifle semiautomático e duas pistolas, assassinando seis adultos e vinte crianças com idades entre seis e sete anos – sendo 12 meninas e oito meninos – antes de se matar. O massacre durou 11 minutos.
No mesmo dia, do outro lado do mundo, Min Yongjun invadiu a escola primária da vila de Chenpeng, na China, portando uma faca. Ele feriu 23 crianças. Ninguém morreu.
Distração
A suposta controvérsia sobre a relação entre facilidade de aceso a armas de fogo e crime violento voltou a ser alvo de debate na última semana, quando os Estados Unidos viveram mais um massacre escolar, desta vez com 19 crianças e dois adultos mortos, no estado do Texas.
O perpetrador tinha um rifle e uma pistola. Desde 1999, massacres escolares causaram mais de 160 mortes naquele país.
Quando o foco da estatística deixa de ser só escolas e é ampliado para outros locais de grande concentração de pessoas (estações de transporte coletivo, supermercados, escritórios, cinemas) o número de ataques com armas de fogo, só em 2022, passa de 200, com um total de 243 mortes e mais de 900 pessoas feridas.
A insistência na falácia “pessoas, não armas” é uma estratégia diversionista que busca desviar a atenção para supostas “causas profundas” dos massacres, enquanto aquilo que tornou o massacre possível, para começo de conversa, ganha passe livre.
Discutir e resolver as causas do ódio e da alienação é certamente importante, mas este é um projeto de longo prazo – o problema de curto prazo é o fato de pessoas odiosas e alienadas terem acesso fácil aos meios de causar morte por atacado.
Esse é um ponto que o advogado Dennis Hanigan reforça (apresentando dados) seguidas vezes em seu livro “Guns Don’t Kill People, People Kill People – And Other Myths About Guns and Gun Control” (“Armas Não Matam Pessoas, Pessoas Matam Pessoas – E Outros Mitos Sobre Armas e Controle de Armas”): a criminalidade nos Estados Unidos não é significativamente maior ou menor do que em outros países ricos, mas a letalidade do crime americano é maior, porque nos EUA (e agora, cada vez mais no Brasil) armas de fogo são fáceis de obter.
Hanigan cita um artigo publicado no livro “Reducing Gun Violence in America”. Escrevem os autores:
“Os Estados Unidos não são um país mais violento do que outras nações de alta renda. Nossas taxas de roubo de carros, agressão sexual e agressão grave são semelhantes às de outros países ricos (…) No entanto, quando americanos são violentos, os ferimentos que causam têm mais chance de serem fatais”.
Trata-se de algo em que os brasileiros deveríamos prestar mais atenção. Menos de dez dias antes do massacre do Texas, a Folha de S.Paulo noticiava a festa de lançamento de uma marca nacional de fuzil, com pronta entrega e, segundo o Atlas da Violência, o governo Bolsonaro já havia tomado, até o ano passado, pelo menos 30 medidas visando facilitar o acesso do cidadão comum a armas de fogo, levando a uma explosão de vendas.
O debate sobre armamento civil, no Brasil e no mundo, costuma ser enquadrado ora como questão política, ora como questão de segurança pública. Na questão política, há desde os paranoicos insurrecionistas, que querem armas “para se proteger do governo”, até os liberais que acham que, por princípio, todo ser humano adulto deve ser livre para comprar e ter o que quiser, desde que assuma plena responsabilidade pelas consequências.
A segurança pública é, na verdade, uma não-questão. Insistir que armar os cidadãos reduz a criminalidade é puro negacionismo, do nível de dizer que fumar é bom para os pulmões (o que ninguém mais faz, evidência de como o debate sobre revólver ainda está atrasado em relação à conversa sobre cigarro).
Já o problema político se consubstancia num debate sobre regulamentação – e, ao contrário do que dizem os insurrecionistas, há muitas posições intermediárias possíveis entre o mítico “confisco geral” tão usado como espantalho e o “liberou geral” tão sonhado pela turma cosplay de Rambo.
Para que seja honesto, esse debate tem de incluir uma dimensão que o lobby pró-armas deseja ver ignorada por todos: a da saúde pública. Nos Estados Unidos, por exemplo, o número de mortes causadas por armas de fogo em suicídios e acidentes já supera em 25% o de homicídios cometidos com tais armas. Então: afinal, quando o acesso a armas é fácil, quem morre mais?
A vítima é a mulher
Um estudo sobre armamento da população geral, envolvendo amostra de 27 países desenvolvidos, foi publicado em 2013 no American Journal of Medicine. O trabalho determinou que, embora a posse de armas por civis não afete a criminalidade (não, “cidadão de bem” armado não assusta bandido), ela eleva a taxa de mortes por armas de fogo.
“O número de armas per capita por país é um forte preditor independente das mortes relacionadas a armas de fogo num dado país”, escrevem os autores.
“A despeito de qualquer relação exata de causa e efeito, este estudo invalida a hipótese de que armas tornam uma nação mais segura”. Em mais um golpe no mito de que “armas não matam pessoas, pessoas matam pessoas”, o mesmo artigo conclui que questões de saúde mental têm “significância limítrofe”.
Em 2014, uma revisão sistemática com meta-análise – estudo que procura extrair conclusões gerais de uma série de pesquisas sobre um mesmo tema – a respeito dos impactos de se ter acesso fácil a arma de fogo encontrou forte correlação entre esse acesso e o risco de cometer suicídio ou ser vítima de homicídio.
Os números do estudo, que envolveu pesquisas realizadas dentro e fora dos Estados Unidos, mostram que ter uma arma de fogo disponível triplica o risco de suicídio e dobra o de acabar vítima de homicídio.
Especialmente digno de nota nesse estudo é a constatação de que o acesso fácil a armas de fogo eleva o risco de suicídio especialmente para homens – já o de ser vítima de homicídio aumenta de modo significativo para mulheres.
Um levantamento da década de 90 sugere que a arma presente no lar tem chances iguais de ser usada tanto para intimidar um membro da família do “cidadão de bem” quanto para legítima defesa (citando: “a maior parte das exibições de armas de fogo foi feita por figuras do sexo masculino contra mulheres com quem tinham intimidade”).
De volta a 2014, trabalho publicado no American Journal of Public Health apontou que o aumento no número de armas nas mãos da população civil correlaciona-se estatisticamente a um aumento nas mortes de conhecidos do dono da arma – parentes, amigos, cônjuges, colegas de trabalho – mas não a mortes de desconhecidos.
Compilação da literatura científica sobre o assunto, disponível no website da Escola de Saúde Pública de Harvard, resume bem a situação: “onde há níveis mais elevados de posse de armas de fogo há mais suicídios por arma de fogo e mais suicídios em geral, mais homicídios por armas de fogo e mais homicídios em geral, e mais mortes acidentais por arma de fogo”.
Repare que o aumento em suicídios e em homicídios não se dá apenas na proporção dos cometidos com arma de fogo, mas no número geral. É mais uma comprovação do “efeito eficácia” que vimos ao discutir a falácia das armas vs. pessoas.
Ano passado, o Instituto Sou da Paz publicou relatório apontando o papel das armas de fogo na violência sofrida por mulheres brasileiras.
A vítima é você
No geral, os dados de diversos levantamentos indicam que o “cidadão de bem” que adquire uma arma tem muito mais chance de usá-la – ou vê-la ser usada – contra si mesmo ou um ente querido do que em defesa própria.
Um estudo publicado em 1998 avaliou as causas de mais de 600 disparos de arma de fogo ocorridos num intervalo de 18 meses em três cidades dos Estados Unidos, no interior ou nas imediações de uma residência.
Desses, 8% foram disparos acidentais, 19%, suicídios (completos ou apenas tentativas), 70% atos criminosos e 2%, atos de legítima defesa (as proporções não somam 100% porque arredondei os decimais).
Por esses números, se uma arma guardada em casa por um “cidadão de bem” um dia vier a dar um tiro, a chance de o disparo ser contra a própria cabeça é quase dez vezes maior do que contra um bandido.
Trabalho publicado em 2020 no New England Journal of Medicine sugere que a mera presença de uma arma no domicílio eleva o risco de suicídio em três vezes para homens e sete vezes para mulheres.
Aqui, mais uma vez, encontramos o “efeito eficácia”: um estudo publicado na década de 1970 punha a letalidade das tentativas de suicídio com arma de fogo em mais de 90% (dados mais recentes falam em mais de 80%).
Esses números tornam-se especialmente dramáticos quando levamos em conta que a decisão de cometer suicídio é muitas vezes fruto de impulso ou desespero, e que a maioria das pessoas que sobrevivem a tentativas de suicídio não volta a atentar contra a própria vida; de fato, a taxa de reincidência entre sobreviventes de tentativas de suicídio com armas de fogo é uma das mais baixas.
Mas essas armas são tão boas no que fazem que quem as utiliza só muito raramente ganha a chance de pensar melhor.
O Centro de Controle de Doenças (CDC) do governo americano tem estatísticas epidemiológicas sobre o impacto das armas na saúde pública.
Segundo os dados de 2020, naquele ano houve 19 mil homicídios cometidos com arma de fogo, além de 24 mil suicídios por arma de fogo e cerca de 2 mil outras mortes provocadas por disparos – acidentes, por exemplo.
Com 45 mil vidas perdidas no total, armas de fogo já matam mais americanos, por ano, do que acidentes de carro (40 mil mortes em 2020).
Há menos informações disponíveis sobre o Brasil do que sobre os Estados Unidos e outros países desenvolvidos, mas fontes como o Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostram que estamos trilhando um caminho de erros muito parecido com o percorrido, até agora, pelo Grande Vizinho do Norte: entre 2017 e 2020, o número de registros de armas de fogo na Polícia Federal mais que dobrou, passando de 630 mil para 1,27 milhão. Só o número de armas novas registradas em nome de cidadãos comuns saltou mais de 90% entre 2019 e 2020.
Ao mesmo tempo, o ano de 2020 viu uma reversão na tendência de queda no número de mortes violentas intencionais – classe que agrega homicídios dolosos, latrocínios, lesão corporal seguida de morte e morte em ação policial.
Armas de fogo foram empregadas em 75% dos homicídios dolosos, 60% dos latrocínios, 85% das mortes causadas por intervenção policial e em 14% das lesões corporais seguidas de morte.
Existem ainda estudos nacionais sugerindo que cidadãos armados correm maior risco de vida quando são abordados por criminosos. E a arma de fogo já é o segundo método mais utilizado em tentativas de suicídio no Brasil.
*Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de “O Livro dos Milagres” (Editora da Unesp), “O Livro da Astrologia” (KDP) e coautor de “Ciência no Cotidiano” (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e “Contra a Realidade” (Papirus 7 Mares)
Publicado originalmente na Revista Questão de Ciência com o título: “Pessoas matam pessoas. Armadas, matam muito mais”
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