Por Leonardo Dantas Silva
Brincantes – Prefeitura do Recife
O maracatu nação, da forma hoje conhecida, tem suas origens na instituição dos Reis Negros, já conhecida na França e na Espanha, no século XV, e em Portugal, no século XVI. Em Pernambuco, a presença da corte de reis negros faz parte das narrativas de viajantes, a partir de 10 de setembro de 1666, segundo testemunho de Souchou de Rennefort, in Histoire des Indes Orientales, publicado em Paris 1688.
Documentos sobre as coroações de soberanos do Congo e de Angola, na igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos da Vila de Santo Antônio do Recife, são conhecidos a partir de 1674, conforme documentação reunida em Alguns documentos para a história da escravidão.1
Os cortejos dos reis negros eram geralmente anotados pela imprensa, quando das festas de Nossa Senhora dos Prazeres e nas do Rosário de Santo Antônio, como descreve o Diario de Pernambuco em sua edição de 20 de outubro de 1851 sem a denominação de maracatus:
“… percorrendo à tarde algumas ruas da cidade, divididos em nações , cada uma das quais tinha à frente o seu rei acobertado por uma grande umbela ou chapéu-de-sol de variadas cores.
Tudo desta vez se passou na boa paz e sossego, porquanto a polícia, além de ter responsabilizado, segundo nos consta, o soberano universal de todas as nações africanas aqui existentes, por qualquer distúrbio que aparecesse em seus ajuntamentos, não deixou por isso de vigiá-los cuidadosamente”.
Os reis negros, em especial o Rei do Congo que possuía uma hierarquia própria sobre os membros das demais nações africanas aqui residentes, compareciam às festas religiosas protegidos pela umbela, um grande pálio redondo, ladeado por dignitários de suas respectivas cortes, sendo o cortejo aberto pela bandeira da nação, juntamente com outras bandeiras arvoradas, e acompanhados por instrumentos de percussão, nem sempre ao gosto da população branca, como se depreende na observação do Padre Carapuceiro:
“Alguns desses chapelórios ainda há poucos anos apareciam nos batuques dos pretos em dias de Nossa Senhora do Rosário, cobrindo o figurão chamado de rei dos congos” (Diario de Pernambuco, 15.3.1843).
No Recife a denominação maracatu servia, a partir da primeira metade do século XIX, para denominar um ajuntamento de negros, como por ocasião da fuga da escrava Catarina, anotada por José Antônio Gonsalves de Mello em consulta à edição do Diario de Pernambuco de 1o de julho de 1845:
“Em o dia 2a feira do Espírito Santo do ano próximo passado, fugiu a preta Catarina, de nação Angola, ladina, alta, bastante seca de corpo, seio pequeno, cor muito preta, bem feita de rosto, olhos grandes e vermelhos, com todos os dentes da frente, pés grandes metidos para dentro, muito conversadeira e risonha, de idade de 22 anos; tem sido encontrada na Estrada da Nova da Passagem da Madalena e no Aterro dos Afogados, vendendo verduras e aos domingos no maracatu dos coqueiros do dito Aterro, e há notícia de ser o seu coito certo a matriz da Várzea; cuja escrava pertence a Manoel Francisco da Silva, morador na Rua Estreita do Rosário, 10, 3o andar, ou em seu sítio em Santo Amaro, junto à igreja, o qual gratificará generosamente a quem lh’a apresentar”.
Na sessão extraordinária da Câmara Municipal do Recife de 28 de abril de 1851, foi oficiado ao desembargador Chefe de Polícia “uma petição do preto africano Antônio Oliveira, intitulado Rei do Congo, queixando-se de outro que, sem lhe prestar obediência, tem reunido os de sua nação para folguedos públicos, a fim de que o mesmo desembargador providenciasse no sentido de desaparecer semelhantes reuniões, chamadas vulgarmente de maracatus, pelas conseqüências desagradáveis que delas podem resultar” (Diario de Pernambuco, 27.5.1851).
O maracatu, na verdade, era tão somente o batuque dos negros, com localização fixa em determinado bairro da cidade. A conclusão é reforçada pelo depoimento do carnavalesco João Batista de Jesus, “Seu Veludinho” do maracatu Leão Coroado, que segundo a tradição faleceu com 110 anos, prestado à pesquisadora Katarina Real em janeiro de 1966. 2
Maracatu nem tinha o nome de maracatu. O nome era nação. Uma “nação” mandava ofício para outro “estado”. Surgiu essa palavra pelos homens grandes…. quando ouviram os baques dos bombos, chamaram “aquele maracatu!”.
Com a abolição da escravatura negra, em 1888, e a proclamação da República, em 1889, a figura do Rei do Congo – Muchino Riá Congo – perdeu a sua razão de ser. Os cortejos dos reis negros já presentes no carnaval, por sua vez, passaram a ter como chefe temporal e espiritual os babalorixás dos terreiros do culto nagô e vieram para as ruas do Recife, não somente nos dias de festas religiosas em honra de Nossa Senhora do Rosário, mas também nas festas carnavalescas.
Após a abolição, porém, os antigos cortejos das nações africanas, que continuaram a se fazer presentes no carnaval do Recife então sob a chefia dos seus babalorixás, passaram a ser chamados de maracatus, particularmente quando a notícia tinha conotação policial, como a divulgada pelo Diario de Pernambuco, em sua edição de 26 de fevereiro de 1889.
Ainda recentemente, ao que se depreende do depoimento do presidente da Nação do Leão Coroado, Luiz de França, falecido aos 95 anos, “para conversar pouco, só digo que o maracatu é da seita africana”. (Diario de Pernambuco, 14 de janeiro de 1996).
A mais tocante descrição de um maracatu carnavalesco do início do século vem de Francisco Augusto Pereira da Costa (1851-1923) que, em 1908, assim relata o cortejo no seu Folk-Lore Pernambucano 3 :
“Rompe o préstito um estandarte ladeado por arqueiros, seguindo-se em alas dois cordões de mulheres lindamente ataviadas, com os seus turbantes ornados de fitas de cores variegadas, espelhinhos e outros enfeites, figurando no meio desses cordões vários personagens, entre os quais os que conduzem os fetiches religiosos, — galo de madeira, um jacaré empalhado e uma boneca de vestes brancas com manto azul — ; e logo após, formados em linha, figuram os dignitários da corte, fechando o préstito o rei e a rainha”.
Estes dois personagens, ostentando as insígnias da realeza, como coroas, cetros e compridos mantos sustidos por caudatários, marcham sob uma grande umbela e guardados por arqueiros.
No coice vêm os instrumentos: tambores, buzinas e outros de feição africana, que acompanham os cantos de marcha e danças diversas com um estrépito horrível.
Aruenda qui tenda, tenda,
Aruenda qui tenda, tenda,
Aruenda de totororó.
Um dos elementos sagrados do maracatu é a Calunga, também chamada de boneca, sempre presente ao cortejo das nações africanas, do qual se originou o nosso maracatu. Segundo esclarece Alberto da Costa e Silva 4:
“Mantendo-se em segredo, os vínculos entre grupos ambundos, num segredo auxiliado pela ignorância dos senhores de escravos, tinham os chefes vendidos [escravos] de mostrar a fonte do seu poder – e já agora também penhor de unidade do grupo ao Brasil -, a calunga”.
Até os nossos dias a Calunga faz parte do ritual do maracatu, encarnando nos seus axés a força dos antepassados do grupo. Em sua honra são cantadas, ainda dentro da sede, as primeiras loas, quando a Calunga é retirada do altar pela dama-do- paço e passa às mãos da rainha, que a entrega à baiana mais próxima e assim se sucede, de mão em mão até retornar novamente às mãos da soberana.
No Maracatu Elefante, pesquisado entre 1949-1952 pelo musicólogo Guerra Peixe, três calungas se destacavam: Dona Emília, Dom Luís e Dona Leopoldina.
A boneca é de cera
É de cera e madeira
A boneca é de cera
É de cera e madeira
Para a calunga “Dona Emília” eram dedicadas as maiores atenções. A ela era entoada a primeira toada, referida acima, na cerimônia também denominada de “a dança da boneca”. A ela também eram consagrados os cânticos mais fortes: é essa principal boneca levada à porta da igreja de Nossa Senhora do Rosário; com ela o Maracatu Elefante dança diante dos terreiros (de xangô) visitados. É nas canções oferecidas a Dona Emília que os músicos executam o ritmo de Luanda – o toque “para salvar os mortos” ou eguns. 5
“Dom Luís”, segundo Guerra Peixe, representa “um rei africano”, sendo por isso considerado como “Rei do Congo” pelos membros do grupo, bem de acordo com a interpretação recente de Alberto da Costa e Silva (op. cit.); numa clara referência aos primórdios do folguedo, coincidindo com a crença de que os poderes da Calunga estariam ligados aos seus ancestrais africanos, como bem enfoca esta loa: “A bandêra é brasilêra/ Nosso reis veio de Luanda / Ôi, viva Dona Emília / Princesa Pernambucana”.
A orquestra de um maracatu nação, também chamado de baque virado, é formada tão somente por instrumentos de percussão, ao contrário dos maracatus de orquestra que quase sempre têm um trombone e outros instrumentos de sopro no seu conjunto.
Guerra Peixe, em Maracatus do Recife, assim descreve o seu batuque:
“O tarol anuncia levemente um esquema rítmico bem simples, rufado e intercalado de pausas; quase no mesmo instante, o gonguê assinala a sua rítmica característica; a seguir, dão entrada as caixas-de-guerra. Por essa altura, o tarol já passou do esquema inicial às variações. Daí prosseguem as entradas dos zabumbas: o marcante destaca os baques violentos e espaçados; o meião, pouco depois, segue o toque do marcante; e, conjuntamente, ressoam os repiques, aumentando enormemente a intensidade do conjunto.
Releva notar que mais ou menos contemporaneamente à entrada dos últimos, as baianas respondem em coro. À repetição do coral, os zabumbas fazem variações, as quais cessam cada vez que a rainha (ou diretor, no caso do Leão Coroado) canta o solo.
Novamente, à volta do coro, repetem-se as variações, enquanto a intensidade se torna cada vez mais forte e o andamento vai sendo acelerado, tudo concorrendo para subjugar as baianas.
Alcançando o clímax musical, o toque permanece algum tempo na polirritmia cada vez mais violenta quando, sobressaindo-se a tudo, se ouve o apito da rainha (ou responsável pelo conjunto) advertindo o próximo fim da música.
Baianas e músicos ficam atentos e, à repetição do apito – seja em que momento tenha coincidido no decorrer da execução – os batuqueiros aguardam o próximo ictus do motivo rítmico e, subitamente, todo conjunto estaca num preciso e intensíssimo baque surdo: pára o toque”.
A orquestra de um maracatu nação é quase sempre formada por um gonguê, um tarol, duas caixas-de-guerra e nove zabumbas (bombos), podendo ser acrescido um ganzá e o número de zabumbas variar de acordo com as posses do contratante.
Preservando a denominação de nação, os préstitos dos maracatus de baque virado (que utilizam nas suas apresentações tão somente instrumentos de percussão de origem africana) continuam a desfilar pelas ruas do Recife nos dias do carnaval e nos meses que antecedem a grande festa.
Denominando-se de Nação do Elefante (1800), Nação do Leão Coroado (1863), Nação da Estrela Brilhante (1910), Nação do Indiano (1949), Nação Porto Rico (1915), Nação Cambinda Estrela (1953), além de outros grupos que surgiram mais recentemente, mantendo a tradição africana dos seus antepassados.
1 SILVA, Leonardo Dantas (Org.). Alguns documentos para a história da escravidão. Recife: Editora Massangana, 1988.
2 REAL, Katarina. O Folclore no Carnaval do Recife. Recife: Editora Massangana, 1990. 2ªed. p. 184.
3 COSTA, F. A . Folk-Lore Pernambucano. Rio: Imprensa Oficial, 1908.
4 SILVA, Alberto da Costa e. A enxada e a lança – A África antes dos portugueses. Rio: Nova Fronteira, 1992.
5 GUERRA-PEIXE, César. in Maracatus do Recife. Prefácio de Leonardo Dantas Silva. Recife: Fundação de Cultura, 1981. 172 p. il.(Coleção Recife, v. 14).
SILVA, Leonardo Dantas (Org.). Alguns documentos para a história da escravidão. Recife: Editora Massangana, 1988.
REAL, Katarina. O Folclore no Carnaval do Recife. Recife: Editora Massangana, 1990. 2ªed. p. 184.
COSTA, F. A . Folk-Lore Pernambucano. Rio: Imprensa Oficial, 1908.
SILVA, Alberto da Costa e. A enxada e a lança – A África antes dos portugueses. Rio: Nova Fronteira, 1992.
GUERRA-PEIXE, César. in Maracatus do Recife. Prefácio de Leonardo Dantas Silva. Recife: Fundação de Cultura, 1981. 172 p. il.(Coleção Recife, v. 14).
SILVA, Leonardo Dantas e SOUTO MAIOR, Mário. Antologia do Carnaval do Recife. Recife: FUNDAJ /Editora Massangana, 1991.
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