A tradição do maracatu rural: o encantado da Zona da Mata de Pernambuco
“A gente se abaixa
e se levanta. Se ajoelha
e bota o ouvido no chão
para ouvir
o que vem vindo
Vai certinho
para o Juízo do camarada.
Dá pra sentir
de uns 3 Km
se vêm
e quantos vêm de caboclos”
Por Pedro Américo de Farias
Brincantes – Prefeitura do Recife
Quem procura entender e definir o Maracatu de Baque Solto encontra, de saída, uma série de dificuldades. A bibliografia é pequena e recente, há versões pouco aprofundadas sobre sua origem e evolução, a memória dos seus brincantes está precariamente registrada, pouco se sabe a respeito da poesia dos mestres e da religiosidade que acompanha os rituais.
Nossa mistura afro-indígena
“As moças de Macugê
todas elas são formosas.
De dia aplantam lírios
de noite aplantam rosas”
Embora divergentes em alguns aspectos, as ideias em torno dos maracatus de baque solto convergem para um ponto comum: a dificuldade de compreensão das suas origens. Tentativas não faltam. Algumas parecem mais convincentes, outras mais fabulosas, mas todas unânimes em admitir a mistura das culturas afro-indígenas.
Katarina Real, no seu livro O Folclore no Carnaval do Recife, declara que “entre todos os deslumbrantes folguedos que percorrem as ruas do Recife e os morros e córregos do subúrbio, durante a época carnavalesca, um dos mais extraordinários é, sem dúvida, o Maracatu Rural, também denominado de ‘Maracatu de orquestra’ ou ‘Maracatu de Baque-Solto’. De todos estes folguedos tem sido, não somente o menos estudado, como também o menos compreendido. É até estranha a sua existência no Recife, durante várias décadas, numa penumbra de mistério, quase desinteresse por parte de alguns e crítica violenta por parte de outros”.
Katarina atribui o surgimento dos maracatus de baque solto a “uma fusão de elementos de vários folguedos populares existentes no interior de Pernambuco (um belo exemplo da dinâmica folclórica): pastoril e ‘baianas’, cavalo-marinho, caboclinhos, folia (ou rancho) de Reis etc. e que tal fusão teve lugar tanto no interior como, depois, na cidade do Recife.
Não há dúvida, também, que os maracatus rurais iam incorporando toadas de maracatus-nações, ou ‘aruendas’, que existiam nas cidades do interior pernambucano (por exemplo, a ‘Aruenda Iaiá Pequena’ de Goiana, hoje infelizmente desaparecida)”.
Guerra Peixe, que estuda de maneira especial os aspectos musicais, afirma que “os maracatus-de-orquestra não nos parecem senão a mistura ou fusão de elementos tomados dos antigos Maracatus do Recife, com os originados de localidades diversas, do Estado de Pernambuco. Pelo menos musicalmente, esclareça-se.”
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O pesquisador e professor de Folk-comunicação, Roberto Benjamin, admite que encontrar hoje uma resposta para a questão da origem do Maracatu de baque solto não é tarefa fácil, mas apresenta informações que dão algumas pistas: inicialmente os brincantes eram só masculinos e muitos grupos tinham a denominação de cambinda. A palavra vem de Cabinda, região ao Norte de Angola, acima do rio Congo.
Um grande contingente de escravos no Brasil era chamado de cambindas. Há ainda grupos de cambindas – informa Benjamin – “que são só masculinos: apresentam-se na Paraíba, em Taperoá e na praia de Lucena; e há cambinda em Pernambuco, em Ribeirão e Pesqueira; e houve em São Bento do Una e Triunfo. E eu tive informação de que houve em Bonito e Bezerros e em outros cantos, só que essas outras eu não chequei”.
A hipótese sob a qual trabalha Roberto Benjamin é a de que o maracatu de baque solto tenha evoluído dos grupos de Cambinda, que agregaram elementos de outros folguedos. Curiosamente, os dois mais antigos maracatus de baque solto, em atividade, chamam-se Cambindinha, de Arassoiaba (fundado em 1914) e Cambinda Brasileira, do engenho Cumbe, em Nazaré da Mata (fundado em 1918).
Religiosidade
“Eu sou caboclinho
Eu só visto pena
Eu só vivo em terra
para beber Jurema.”
Comecemos pela Calunga (diferente da calunga de maracatu nação, geralmente de madeira e com ritos próprios) ou Boneca, que Mário de Andrade define como sendo “Ídolo, feitiço e apenas objeto de excitação mística, e ainda símbolo político-religioso de reis-deuses”, acrescentando que : “como a sua nomenclatura, o seu conceito também não está nem talvez nunca esteve perfeitamente delimitado dentro da mentalidade negra”.
O fato é que há uma manifestação do sobrenatural, em que entidades protetoras são invocadas, em rituais de Umbanda, para que propiciem aos brincantes do Maracatu sucesso nas suas andanças. Assim, a boneca é calçada, isto é, consagrada, batizada com rezas e defumadores e caboclos desfilam atuados, portanto, protegidos pela magia dos cultos à jurema ou semelhantes.
Em entrevista à jornalista Maria Alice Amorim, a costureira Maria Antônia Araújo, rainha e dona do Maracatu Leão da Mata, de Itaquitinga, disse: “o caboclo de lança, de frente, tem que sair manifestado”. Já Severina de Carlos, costureira e madrinha do Cambinda Brasileira, revelou à mesma fonte, que no sábado de carnaval, “bota um ponto” nos caboclos, que voltam à sede, na quarta-feira de cinzas, para ela “desmanchar o ponto”. A figura da madrinha tem status de feiticeira.
A grande viagem pelas estradas do mistério e da fantasia
Organizar e tocar adiante um maracatu de baque solto não é tarefa fácil. Quem quiser conferir o trabalho que dá, acompanhe de perto a luta de um desses brinquedos para colocar em ordem, arrumar o esquema da agremiação e deixá-la pronta para os desfiles carnavalescos. Verá que se trata de árdua missão, para os poucos que, verdadeiros missionários da cultura, de fato “vestem a camisa”, arregaçam as mangas e caem em campo, na batalha por dinheiro e outras formas de apoio, para “tirar o brinquedo”.
Sua apresentação se dá num clima de muita agitação, o que parece crescer com as evoluções efetuadas pelos caboclos de lança. Os primeiros a aparecerem na cena do desfile são as figuras sujas: Mateus, Catirina ou catita, burra, babau e caçador, que divertem e fazem “captação de recursos” para si mesmos. Depois deles, os caboclos de lança, formados em duas trincheiras (filas), puxadas pelo mestre de cabocaria, também chamado boca de trincheiras. Cada trincheira obedece ao comando de um caboclo de frente, que conduz as manobras ordenadas pelo mestre.
Os caboclos são tantos quanto permite o poder aquisitivo do dono ou sua capacidade de arregimentação. A seguir vem o símbolo (leão, águia, peixe, barco). Seguem-se os caboclos de pena (reamá ou tuxau). Começam os cordões de baianas (o baianal) que são, ao mesmo tempo, damas de buquê. Entre estas, a madrinha (dama da boneca – a boneca preta, “calçada” pela madrinha).
No miolo, entre os cordões de baianas, postam-se: em primeiro plano, o porta-bandeira ou bandeirista, conduzindo a bandeira ou estandarte ou pavilhão; em segundo plano, a corte real: rei, rainha, valete e dama, protegidos por dois guarda-chuvas; em terceiro plano, o mestre de toadas e o contra-mestre, seguidos do terno (caixa, surdo, gongué e cuíca ou porca) e os músicos (trombone e piston). Terno e músicos (de sopro) formam a chamada orquestra.
A diretoria se espalha, de acordo com as circunstâncias dos desfiles, mas sempre fica uma parte na frente, outra atrás, ou dos lados, ou ainda no centro, pois os seu membros (presidente, vice, secretário, enfim diretores) têm liberdade plena de movimento, dentro do brinquedo.
Descobrir a origem seria meio caminho andado para desenhar o mapa da mina e chegar à compreensão desse brinquedo sério, que também se chama Maracatu de Orquestra, de Trombone, ou Maracatu Rural – como é mais conhecido – contra a vontade dos que fazem a Associação dos Maracatus de Baque Solto – AMBS, com sede em Aliança, na Zona da Mata Norte pernambucana.
Bailado frenético samba sincopado
A primeira impressão que se tem de um maracatu de baque solto em evolução é de que se trata de uma dança guerreira: tensa, frenética, que Katarina Real assim descreve: “o conjunto do maracatu rural, que fica num círculo compacto, avança rapidamente ao ritmo acelerado do ‘terno’ – e parece um pião de cores brilhantes rodando – com os caboclos de lança correndo em círculo por fora, as baianas e ‘damas de buquê’ dançando num outro círculo interior e, no centro, o estandarte, a ‘boneca’ e os ‘caboclos de pena’ “.
O pesquisador Guerra Peixe diz que as danças no maracatu de orquestra são “vagamente delineadas, numa fusão ou mistura de samba e marcha”.
A música na tradição do maracatu rural
“Macaxeira vira mandioca
e a maca é que machuca
e é musqui, musquito e mutuca
mutuca ,maribondo e muriçoca.”
Sob o comando do mestre cantador, empunhando uma bengala (correspondente ao bastão de comando) e soprando um apito, tem início e fim cada momento de toque da orquestra do maracatu de baque solto.
Baque é sinônimo de toque, afirma Guerra Peixe, explicando que nos Maracatus – nação, ou tradicionais, dá-se o “toque virado” ou “baque virado” (significando “toque dobrado” ou “baque dobrado”), porque há, pelo menos, três zabumbas. Já nos maracatus de orquestra, em que participa apenas um zabumba, ocorre o “toque solto”, ou “baque solto”.
O mestre apita, levanta a bengala, a orquestra obedece ao seu comando, pára o toque, o mestre leva ou não a mão ao ouvido e canta, de cor ou de improviso, uma das quatro modalidades da cantoria, nesse tipo de maracatu: marcha (sempre de 4 versos), samba curto (4, 5 ou 6 versos, sendo, de 6 o tipo mais comum), samba comprido (geralmente de 10 versos, mas podendo variar para 12,14,16,18 ou 20), e ainda o galope (habitualmente de 6 versos).
A modalidade é muito mais conhecida em função da toada do que propriamente da quantidade de versos, que eles chamam pés. Quando o mestre termina a estrofe, volta a apitar, a orquestra toca, a cabocaria e o baianal se agitam, freneticamente, até que se ouve o apito do mestre, para mais uma toada. Param orquestra, chocalhos de caboclos, todos os folgazões, que a vez é da poesia. Assim, sucessivamente, horas e horas, uma noite toda, poesia e dança se alternam e se completam para alegria geral.
Beleza plástica guerreira
O que no Maracatu de baque solto vale destacar, em termos de indumentária, pois trata-se de elementos realmente deslumbrantes e típicos desse folguedo, são os caboclos de lança e os de pena (tuxaus ou reamá – arreia mal).
Os caboclos de lança ou lanceiros vestem o ceroulão – calça de chitão; a fofa – calça frouxa com franja por cima do ceroulão; meião de jogador, preso à perna por uma liga de elástico; uma camisa de mangas compridas de cores vivas; sobre esta, a gola colorida de terbrim ou veludo forrado com popeline, bordada com missangas, vidrilhos e lantejoulas; um surrão, com quatro a cinco chocalhos, armado com galhos de madeira e coberto de pelúcia sintética, imitando o couro de carneiro (anteriormente usado).
“Meninas me dêem adeus
dêem-me adeus que já me vou.
Fiquem com sua família
dentro do seu bangalô…”
Cobrem-se com um lenço xadrez e sobre este um chapéu de palha ornado de fitas multicoloridas de papel crepom ou celofane. Empunham uma lança de 2,20m com quatro ou oito quinas, também chamada guiada. Calçam sapato tênis e usam óculos escuros. O caboclo que sai “atuado” segura entre os dentes um cravo branco ou uma rosa ou um galho de arruda.
Quanto aos caboclos de pena, estes vestem os mesmos ceroulão, fofa, camisa de mangas compridas e calçam o mesmo tênis, usados pelos caboclos de lança. O que os distingue destes é a gola, de menor tamanho, mas com motivos semelhantes, é o cocar de penas de ema e de pavão (são centenas delas), é o machado, em vez de lança, mas como esta, enfeitado de fitas coloridas, é ainda uma tanga de penas na perna, no braço e na cintura. Alguns usam também umas cabacinhas à cintura.
O Ritual de preparacão do caboclo
A grande jornada
A grande jornada dos maracatus de baque solto se dá durante o carnaval, para o qual se preparam o ano inteiro e depois do qual passam o resto do ano comprometidos com dívidas, que a receita, proveniente das apresentações carnavalescas, não é capaz de cobrir. Como se sabe, basicamente, os maracatus de baque solto estão sediados na Zona da Mata Norte de Pernambuco, onde surgiram.
Sabemos também que percorrem um roteiro de desfile que incluem sempre mais de dez cidades. O que poucos conhecem é que, antes de partir para essa excursão de trabalho, cada maracatu realiza na sua sede o que chamam de chegada, que não é mais que um ritual de preparação para o percurso de três dias de apresentações por cidades como Nazaré, Aliança, Carpina, Tracunhaém, Arassoiaba, Buenos Aires, Paudalho, Itaquitinga, Igarassu, Goiana, Lagoa de Itaenga e várias outras, até chegar a Olinda e Recife.
Na cerimônia de chegada, o mestre cantador, vai fazendo, em versos, o chamamento de todos os componentes do cortejo, na medida em que vão chegando à sede. Cada caboclo de lança ou de pena é mencionado e recebido com evolução dos caboclos já presentes, que se movimentam como se estivessem numa ação de guerra. O recém-chegado realiza duas ou três caídas, a última destas aos pés do mestre, que lhe canta uma loa de boas vindas.
O mestre de cabocaria assessora o mestre de toadas, anunciando-lhe os nomes dos que chegam. Essa cerimônia dura uma média de três a quatro horas até que, completado o quadro dos desfilantes, são feitas as manobras de despedida da sede e dada a ordem de partida. Lotam, então, dois, três ou quatro carros (ônibus e caminhões) e partem em busca das chamadas “Federações”, nas cidades com que fizeram contratos.
Em cada cidade e palanque, multidões ouvirão toadas de sambas, galopes ou de marchas como esta do mestre José Galdino do Leão Teimoso, de Buenos Aires:
“Bom dia, seu Amauri
tá Galdino aqui de novo
pra fazer seu carnaval
pra o Senhor e pra o seu povo”.
BIBLIOGRAFIA
SOUTO MAIOR, Mário e SILVA, Leonardo Dantas (org.). Antologia do Carnaval do Recife. Recife: Massangana, 1991.
REAL, Katarina. O Folclore no Carnaval do Recife. Recife: Massangana, 1990, 2ª ed.
AGREMIAÇÕES Carnavalescas. Recife: Fundação de Cultura, 1988.
ENTREVISTA de Manoel Coelho, do Maracatu Leão de Ouro, de Nazaré da Mata, 1997.