Sociedade

A imprensa entre tribalismo e “outroladismo”

O direcionamento insidioso de textos para que se ajustem a narrativas para agradar a um determinado grupo (ou a si mesmo) piora ainda mais a questão da polarização da sociedade e contribui para o descrédito do jornalismo

Por Marcelo Yamashita*

Nos últimos anos, o debate sobre a objetividade no jornalismo tem se intensificado, principalmente pela crise de confiança que arrebata o setor e leva a demissões de profissionais experientes, fechamento de jornais e perda de assinantes. A impossibilidade prática de que a objetividade plena seja atingida não deveria ser motivo para abrir mão deste valor – o método científico é utilizado ainda que, do ponto de vista filosófico, não tenhamos uma definição consensual do que é ciência e que inclua, sem contradições, todos os saberes científicos.

Apesar da objetividade e da independência política-ideológica do jornalismo estarem associadas à credibilidade do veículo de comunicação, a adoção acrítica desses princípios pode conduzir a um jornalismo que transforma o repórter em um mero organizador de declarações, colocando fatos e mentiras lado a lado. A necessidade de mudança, conforme escreve a jornalista Margaret Sullivan no artigo If Trump Runs Again, Do Not Cover Him the Same Way: A Journalist’s Manifesto, publicado no jornal Washington Post, ficou mais evidente com a extrema polarização que se formou no cenário político mundial.

Parece, porém, que o abandono do chamado “outroladismo” por boa parte da imprensa, deixando de tratar igualmente coisas desiguais ou estabelecendo falsas equivalências, foi apenas substituído pelo aumento de um “esteladismo” – neste caso, o jornalista escolhe declarações que corroboram a sua própria opinião, determinada previamente. O direcionamento insidioso de textos para que se ajustem a narrativas para agradar a um determinado grupo (ou a si mesmo) piora ainda mais a questão da polarização da sociedade e contribui para o descrédito do jornalismo. Grupos radicais, seja de qual lado do espectro político se encontrem, não estão dispostos a entender, mas de gritar mais alto.

Uma das consequências da cisão da população em tribos é a deterioração do nível do debate público. Cada nicho ideológico constrói sua própria câmara de eco, formada por jornais e revistas que frequentemente apenas ressoam narrativas insustentáveis. Do ponto de vista mercadológico, a atitude é compreensível, já que a postura independente, em um ambiente onde se privilegia o discurso identitário em detrimento do debate racional, tende a amplificar o número de pessoas ofendidas – melhor assumir um modelo de negócio que gere uma fidelização “dura” de parte do público, ainda que ao preço de construir a idolatria de políticos, por exemplo.

A adoção de linha editorial tendenciosa por uma parte da imprensa tem ainda um efeito negativo que atinge os veículos que buscam se manter equidistantes diante das paixões da época, e que acabam acometidos de timidez – quando não adotam a autocensura – por receio de se verem confundidos com a franja partidarizada, ou de sofrer “cancelamento” (virtual ou de assinaturas).

Há que se reconhecer a importância dos veículos de comunicação ativistas, mas o ativismo não deveria se deixar confundir com tendenciosidade dolosa – há uma diferença entre explorar ou evidenciar um ângulo específico dos fatos e distorcê-los, transformando-os em armadilhas retóricas. Esses veículos deveriam compor um ecossistema habitado também, e preferencialmente, por publicações “clássicas”, comprometidas com a busca da imparcialidade e da objetividade, e que definem o campo comum de referências do debate público.

Achar que a modernização das ferramentas do jornalismo está atrelada ao abandono dos métodos e das preocupações éticas tradicionais relacionados à profissão é um erro. A apuração cautelosa e o cuidado em todas as etapas da produção jornalística deveriam ser valores inegociáveis. Conforme pontua Sulzberger, publisher do New York Times, no artigo Journalism’s Essential Value, é melhor perder uma história do que errar. A pressa em dar a notícia, alimentada em grande parte pelas redes sociais, resulta em erros e na criação do jornalismo a conta-gotas: publica-se o título e os parágrafos do texto vão sendo acrescentados ao longo dia – é o “jornalismo salame”, onde o tema de pauta, que deveria formar um único bloco com tudo o que foi apurado, é fatiado ao longo do dia.

Conforme escreveu Ortega y Gasset, no livro “A Rebelião das Massas”: “É a época das ‘correntes’ e do ‘deixar-se levar’. Quase ninguém oferece resistência aos redemoinhos superficiais que se formam na arte ou nas ideias, ou na política, ou nos costumes sociais. E por isso a retórica triunfa mais que nunca”. Esta passagem, escrita em 1930, encaixa-se perfeitamente nos dias de hoje.

O bom jornalismo, que busca alcance universal e o necessário trânsito entre as diferentes “bolhas” da sociedade, requer a produção de um material que não esteja a serviço de paixões pessoais e que não tenha medo de cancelamentos. A recuperação do respeito e da credibilidade envolve uma discussão sincera dessas questões nas redações.

Marcelo Yamashita é professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência

    Contato

    Recent Posts

    Deborah Crespo lança videoclipe de “Caso Sério” e celebra a Zona Sul de São Paulo

    Com sample dos Racionais e direção de Thiago Nascimento, projeto explora sensualidade e memórias da…

    10 horas ago

    Guiada pela essência da música popular baiana, Monique Nascimento lança “Navegar”

    Faixa antecipa o álbum de estreia da artista, intitulado "Tempo". Ouça aqui "Navegar", novo single de…

    10 horas ago

    24ª Fenearte terá mais de 70 atrações

    24ª Fenearte terá mais de 70 atrações da cultura pernambucana, incluindo shows diários de artistas…

    12 horas ago

    Cepe lança O Condomínio, primeiro romance de Frederico Toscano

    Cepe Editora lançará no próximo sábado "O Condomínio", primeiro romance de Frederico Toscano, no Castigliani…

    12 horas ago

    Transformando Tudo no Mês do Meio Ambiente: o Ateliê Jacaré tem programação especial

    Transformando Tudo no Mês do Meio Ambiente oferece oficinas livres de arte-reciclagem para todas as…

    12 horas ago

    Hellboy e o Homem Torto tem o primeiro teaser divulgado

    Hellboy e o Homem Torto ganha seu primeiro teaser, destacando o lado sombrio do personagem…

    1 dia ago