A fé e o fuzil: como a religião foi incorporada ao mundo do crime no Brasil

 A fé e o fuzil: como a religião foi incorporada ao mundo do crime no Brasil

Bruno Manso. Crédito: USP Talks

O jornalista e pesquisador Bruno Paes Manso fala sobre seu novo livro, “A fé e o fuzil: crime e religião no Brasil do século XXI”

 

Por Texto: Andrea DiP, Clarissa Levy, Ricardo Terto
Colaboração: Ana Alice de Lima

Fonte: Agência Pública

No Brasil, 31% da população se declara evangélica, segundo dados do Instituto Datafolha. Por todo o país, as igrejas expandem-se pelos centros urbanos e periferias. Nas cadeias, as igrejas introduzem um novo regramento de vida para os encarcerados, cujos ensinamentos religiosos os levaram a criar “pequenos impérios teocráticos”, nos quais a fé determina a diferença entre uma execução e o perdão.

É o que afirma o jornalista Bruno Paes Manso em seu novo livro “A Fé e o Fuzil”, que é tema do episódio 90 do podcast Pauta Pública. Durante a entrevista, o jornalista reflete sobre a realidade de São Paulo da década de 1990, quando a cidade apresentava um alto índice de mortalidade, e sobre como grupos criminosos se apropriaram de um discurso anti-sistema. F

Foi apoiada nesse discurso, segundo Paes Manso, que surgiu, em 1993, a facção PCC (Primeiro Comando da Capital), a maior organização criminosa do Brasil, com atuação principalmente no estado de São Paulo, mas também em todo o território brasileiro e em países vizinhos.

No final dos anos 90, Paes Manso começou a conversar com ex-integrantes do mundo do crime que se converteram ao evangelismo. Com o tempo, percebeu que a religião estava sendo adotada por membros do crime organizado como uma “teologia do domínio”. Como exemplo dessa teologia do domínio, o jornalista cita o fato que ocorreu no Rio de Janeiro, em 2016, quando um traficante de apelido “Peixão” (também ordenado pastor) sonhou que Deus o considerava um representante Seu na Terra e que ele precisava conquistar os bairros vizinhos para ampliar seu poder, fundando, assim, o Complexo de Israel – que, atualmente, reúne as favelas Cinco Bocas, Pica-Pau, Cidade Alta, Parada de Lucas e Vigário Geral. Nessa ocasião, Paes Manso decidiu documentar as histórias que colecionava no livro “A fé e o fuzil”.

Confira os principais pontos da entrevista sobre o livro “A fé e o fuzil” e ouça o podcast na íntegra abaixo.

[Andrea Dip] Em seu livro “A fé e o fuzil”, você fala sobre o seu interesse na conversão religiosa de ex-matadores e menciona que essa conversão atua como uma engrenagem que transforma as vidas das pessoas. É interessante como você descreve a maneira como elas passam a enxergar o mundo através da lente do cristianismo, como se fosse um manual bíblico. Você aborda, inclusive, as contradições das mortes realizadas em nome de um justiçamento, buscando um auto-perdão ou um perdão divino, que muitas vezes pode até proteger esses homens, que já cometeram homicídios, de possíveis vinganças. Gostaria que você contasse o que te fascinou nessas histórias.

Eu estava bem envolvido com a alta dos homicídios em São Paulo nos anos 1990, começo dos anos 2000. E como imaginava que eles iam continuar aumentando, comecei a conversar com essas pessoas. Usei a tática de falar com ex-bandidos, ex-traficantes, ex-matadores e ex-justiceiros, que falavam sobre o passado abertamente, porque isso dimensionava o tamanho do milagre de Deus na vida deles.

Eu fui colecionando essas histórias e pra mim sempre foi muito fascinante essa capacidade que eles tinham de construir uma técnica nova que eu não conhecia antes, sendo do centro de São Paulo e de classe média. Uma técnica de transformar a vida e de dar novas oportunidades, abrir janelas e novos futuros a partir de uma narrativa sobre perdão, sobre uma nova regra de vida, sobre autoestima, sobre amar a Deus e ser amado. Pra mim tudo isso era muito interessante e eu sempre vi os evangélicos com muito respeito ao longo dessa fase de apuração e de convívio. Porque me parecia uma solução criada na própria miséria para lidar com a miséria.

O problema foi quando essa fé passou a ser usada para legitimar autoridades e discursos de conflitos, em uma batalha santa do bem contra o mal, começando a exercer uma influência política no Brasil em diversas esferas.

Eu comecei a prestar mais atenção quando conheci a história do complexo de Israel, no Rio de Janeiro, de um traficante que passou a dominar os territórios com o discurso religioso. E a partir do ano de 2018, com o bolsonarismo, que o discurso religioso também justificava uma guerra santa que dialogava com a batalha cultural e que justificava a violência em defesa do bem. Então, aquelas histórias que eu vinha colecionando ganharam uma outra dimensão e eu achei que era o momento de escrever um livro sobre isso.

[Clarissa Levy] A leitura do livro “A fé e o fuzil” me faz refletir sobre os ciclos de homicídios e violência na cidade de São Paulo no fim dos anos 1990. Você aborda o período de uma geração que estava se dizimando, destacando o impacto na cultura hip-hop, no rap e na ascensão dos Racionais MCs. Também comenta sobre como essa alta taxa de mortalidade pode ter incentivado a organização dentro do próprio mundo do crime. Quais elementos você identifica entre o final da década de 1990 e o início dos anos 2000 que podem ter contribuído para o crescimento das religiões pentecostais, especialmente no universo do crime, predominantemente masculino? O que sua pesquisa revela sobre isso? 

A geração que cresceu em São Paulo nos anos 70, 80 e 90 é uma geração transitória que se transformou muito. Eles são filhos e netos dos migrantes que vieram das zonas rurais para tentar a vida e empreender em São Paulo em busca de ascensão social e de um novo destino diferente do que existia nas zonas rurais onde eles viviam. [Eles] Chegam aqui em São Paulo apostando na autoconstrução, na formação de bairros, no emprego nas indústrias, esperando que a vida ia ser diferente.

Os filhos e netos dessa geração já vivem uma desilusão com a cidade. Eles nascem em uma cidade violenta, percebem que a luta dos pais e dos seus ancestrais deu em pouca coisa. Eles são humilhados pela polícia, são violentados, são desrespeitados e precisam criar uma identidade própria nessa cidade. Então, essa geração urbana dos Racionais reinventa uma identidade masculina anti-sistema, de confronto e de revolta. É algo que produz autoestima e uma nova forma de masculinidade urbana. Porque a tradição dos pais era ridicularizada e negada pelos próprios descendentes, porque a cultura rural não fazia sentido na modernidade urbana. Havia um estigma de ignorância a um outro tipo de sabedoria, que era um tipo de sabedoria muito voltado para o ambiente rural, para o clima e para uma cultura de sobrevivência, que passa a ser estigmatizada nas cidades.

Neste momento, esses grupos passam a formar um novo tipo de identidade masculina. E eles formam esse tipo de identidade no momento em que existe uma grande confusão nesses bairros, onde as disputas armadas e os conflitos territoriais estão intensos. São Paulo era uma das cidades mais violentas do Brasil, com mais de 50 homicídios por 100 mil habitantes. E eles passam a falar: ‘’a gente precisa parar de se auto exterminar’’; ‘’a gente precisa perceber que somos fantoches desse sistema’’; ‘’o sistema quer que a gente se mate, a gente precisa de união.’’ E foi sendo formado a partir da poesia, das gírias, do ritmo, da emoção, uma nova forma de leitura de si próprio na cidade, de uma identidade masculina na cidade.

Isso, ao mesmo tempo, que acontece do ponto de vista cultural, na sociedade, na cidade como um todo, dando um novo tipo de autoestima, também vai ser reproduzido na cena criminal. A história do PCC é muito vinculada a história de São Paulo, as comunidades eclesiais de base, a questão da consciência dos pobres, o próprio hip-hop, a mobilização política e tudo mais. E o crime vai dar um outro arranjo a esse tipo de fala, que é o seguinte: ‘’a polícia quer nos matar, o sistema quer nos jogar dentro das grades e nos esquecer por lá’’; ‘’Mataram 111 no Carandiru e o autor do crime foi eleito deputado, então o crime precisa fortalecer o crime, o nosso inimigo é o sistema’’.

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[Andrea Dip] Para quem não está familiarizado com o mundo evangélico, a associação entre fé e fuzil pode parecer estranha. No entanto, além da presença crescente das igrejas nas periferias e nos centros — aspecto que você aborda em “A fé e o fuzil”  —, há uma interação profunda dessas igrejas na vida das pessoas. Outro ponto destacado em sua obra é a confluência entre o crime e o evangelismo. Um elemento que se destaca é a teologia do domínio, que prega a ideia do soldado de Cristo combatendo o inimigo e justificando atos de justiçamento em nome de Deus. Recentemente, circulou um vídeo de evangélicos fardados que mesclavam religião com militarismo. Diante disso, podemos refletir sobre possíveis conexões com a extrema-direita ou com o governo Bolsonaro. Com base nisso, tenho duas questões: a primeira é se você observou essa relação em suas pesquisas e a segunda é se você poderia elaborar mais sobre a relação entre religião e crime.

A discussão sobre batalha espiritual, teologia do domínio, passa a fazer parte de discursos de extrema-direita em diversas partes do mundo, inclusive nos Estados Unidos. É algo muito forte. E, de alguma forma, isso passa a acontecer no Brasil no momento em que vivemos uma crise de legitimidade política muito grande.

A ideia que engajava os progressistas devia parcialmente sua formação à teologia da libertação. Que enxergava o Estado e o papel da Igreja reformista, especialmente a católica, na década de 1980, como organizadores das pessoas pobres. Para a partir da consciência de sua situação de classe, numa análise marxista, pressionar o Estado para que ele concedesse direitos e criasse uma sociedade mais justa, no caminho da social-democracia. Isso foi meio que ruindo com o tempo. As pessoas ficaram céticas porque apesar de todos os avanços que a gente viu acontecer nesses últimos 30 anos de democratização, eles são insuficientes para viver bem na cidade. O cidadão acaba sendo dependente do dinheiro para pagar plano de saúde, escola ou universidade, porque senão ele não consegue mais emprego.

Essa necessidade de ganhar dinheiro para sobreviver ficou muito marcada, ao mesmo tempo que o ceticismo em relação ao Estado ficou muito evidente. O Estado, em vez de ser aquele agente criador de uma sociedade mais justa e desigual, passa a ser agenciador de um grupo que compartilha os mesmos credos, numa guerra contra os inimigos. A autoridade passou a ser formada a partir desse discurso de guerra, que antes era mais forte na esquerda que engajava na guerra contra o capital. A esquerda parou de engajar com o fim das ideologias, e a direita começou a se engajar a partir desse discurso mágico religioso, da luta do bem contra o mal, da teologia do domínio.

Então, o mal estava presente não só no universo cósmico, mas nas instituições, nas escolas, nos terreiros de candomblé, no Brasil de uma forma geral, e muito associada ao esquerdismo. Vai construindo esse discurso de inimigos e promovendo a batalha, e quando essa batalha é feita em defesa do bem, a violência se justifica. Basta ver quando eu cito um estudo de um pesquisador que estimou a quantidade de mortos na Bíblia. Deus teria matado 25 milhões de pessoas nessas disputas, só com o dilúvio foram 20 milhões de pessoas. Então, quando você tem uma guerra em defesa do bem, muitas vezes a violência é justificada, isso tanto na política como no dia a dia mesmo, na polícia, nas milícias. Esses discursos começam a se misturar.

E no Rio de Janeiro isso fica muito evidente no complexo de Israel. A pastora Viviane Costa acompanha isso mais de perto, ela escreveu o livro “Traficantes Evangélicos”. Eu conversei com ela, é uma personagem importante em um dos capítulos do meu livro. O Peixão foi um traficante que se formou pastor da igreja Assembleia de Deus, e em algum momento ele sonhou que Deus o considerava um representante Dele na Terra. E que ele precisava tomar outros bairros para ampliar o poder de Deus nos territórios que faziam vizinhança com o bairro Parada de Lucas e Vigário Geral. Então ele forma o complexo de Israel. Hasteia uma bandeira de Israel na comunidade, uma estrela de Davi em neon, proíbe a venda de craque, pixa Salmos em diversos muros, expulsa os religiosos de matrizes africanas (tanto da região como de regiões quando ele vai se expandindo na Baixada Fluminense). Assim como o Terceiro Comando Puro e a milícia, ele passa a se enxergar numa guerra do bem contra o mal. No Rio de Janeiro isso é mais escancarado.

Em São Paulo, esses mundos são claramente opostos. Esse papel da conversão é importante, mas conforme o crime começa a se profissionalizar, depois de trinta anos de PCC e depois de 50 anos de tráfico de drogas, o crime não é mais o traficante armado com uma touca na cabeça passando o rádio para vender drogas no varejo. O tráfico chegou às fronteiras, compra drogas na América do Sul, exporta via Porto de Santos. E o Brasil se tornou um dos grandes corredores mundiais de cocaína e maconha para a Europa. E esse dinheiro entra na economia, ele é emprestado e faz o capital do crime girar, vai pro garimpo, pra região norte, vai pra diversas atividades criminais.

O criminoso é um empreendedor que tem ligação muitas vezes com a igreja, porque o fato dele ganhar dinheiro a partir da teologia da prosperidade também significa uma bênção divina. Então, as coisas vão se tornando mais confusas a partir do momento que ganhar dinheiro se torna o valor principal da sociedade urbana atual. E essas coisas começam a se misturar e a gente perde um pouco a referência e passa a viver uma grande confusão de valores, em que crime e religiosidade se misturam.

Reportagem originalmente publicada na Agência Pública

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