A ciência é, por excelência, o campo das verdades provisórias. O jornalista da BBC News Brasil André Biernath diz que “amadurecido pela pandemia, jornalismo científico tem futuro promissor em 2022”
Num trecho do filme O Terceiro Homem, de 1949, Harry Lime, personagem interpretado por Orson Welles, diz uma frase icônica:
“A Itália viveu 30 anos sob os Bórgias e teve guerras, terror, assassinato e derramamento de sangue, mas nos deu Michelangelo, Da Vinci e a Renascença. Na Suíça, eles têm amor fraterno e 500 anos de democracia e paz, e o que eles produziram? O relógio Cuco!”
Guardadas as devidas proporções e ponderações, a frase também resume o processo pelo qual o jornalismo científico passou nos últimos dois anos: em meio à maior pandemia do século, repórteres e editores precisaram aprender na marra a trabalhar com um tema que, muitas vezes, era relegado a poucos profissionais, ficava esquecido num canto qualquer dos sites e dos jornais e era tratado apenas sob a ótica da curiosidade e do entretenimento.
De certa maneira, a covid-19 e toda a crise sanitária decorrente nos mostraram que o jornalismo científico precisa receber mais atenção, mesmo em momentos de calmaria. E, quando falamos especificamente da área de saúde, é essencial que todos tenham em mente que a informação correta, atualizada e contextualizada tem o poder de salvar vidas.
Que fique claro: não estou tentando mostrar aqui o “lado bom da pandemia”, clichê que ganhou as redes sociais e os discursos de autoajuda nesses tempos malucos. Imagino que todos concordamos que não há nada de positivo num período histórico marcado por mais de 600 mil mortes em nosso país e 5 milhões de óbitos no mundo inteiro.
Para o jornalismo científico, porém, esse momento que vivemos trouxe valiosas lições, que nos permitem presumir que a área tem tudo para se desenvolver e crescer, com os devidos incentivos, em 2022 e pelos próximos anos. E esse investimento ao longo dos meses que virão será uma questão estratégica para os veículos e para os profissionais que pretendem explicar o mundo no qual viveremos nas próximas décadas.
Esses meses de 2020 e 2021 escancararam valiosas lições, que eu resumo em quatro tópicos (entraremos em mais detalhes ao longo do artigo): a urgência de escolher bem as fontes e os entrevistados; a importância de ponderar e contextualizar as informações; a dificuldade de comunicar incertezas e o que a ciência ainda não sabe e, finalmente, a necessidade de assumir uma postura mais crítica e inquisitiva diante das evidências (e dos próprios cientistas).
Do ponto de vista profissional e de mercado de trabalho, portanto, há um certo espaço para o otimismo no ano que vem. Até porque o cenário geral é de um enorme pessimismo, como você confere nos próximos parágrafos.
Embora não exista um levantamento ou censo oficial de quantos jornalistas cobrem exclusivamente ciência no Brasil, a impressão geral de quem trabalha na área é a de que somos poucos — ainda mais se compararmos com a realidade de outras editorias, como política e economia.
Mas a pandemia de covid-19, pela urgência e magnitude, fez com que a área fosse tomada por repórteres e editores que estavam mais acostumados a produzir conteúdos sobre outros tópicos.
Por um lado, isso representou uma vantagem competitiva àqueles profissionais que já estavam acostumados com os temas relacionados a uma pandemia, como virologia, infectologia, epidemiologia ou saúde pública.
Mais experientes, os jornalistas científicos sabiam a quem procurar e como ponderar e abordar certos assuntos de uma forma mais aprofundada, responsável e contextualizada.
Por outro, essa maior atenção às pautas científicas permitiu que excelentes jornalistas não especializados se aprofundassem mais na editoria e, a partir daí, produzissem conteúdos com um frescor característico de quem chega ao campo com um olhar novo, sem os vícios e as manias de alguém que já conhece aquilo há tempos.
Isso permitiu reportagens muito importantes com novos ângulos, que mostraram a crise sanitária sob as mais variadas perspectivas.
Dentro desses fenômenos impostos pela urgência de cobrir a maior pandemia do século, destaco quatro grandes aprendizados, oportunidades e tendências.
Falo, claro, de meu ponto de vista particular, mas esses são assuntos que apareceram em muitos debates e conversas informais com colegas de profissão e que, espero, possamos levar para o ano que vem (e pelo resto de nossas carreiras).
1. A escolha das fontes
No desespero para encontrar um especialista que vai entrar ao vivo na TV ou no rádio, ou para fechar a reportagem até o fim do expediente, muitas vezes nós caímos na tentação de ouvir a pessoa que está mais disponível e responde às nossas ligações ou mensagens de WhatsApp rapidamente.
Mas precisamos ter em mente que nem todo médico ou cientista tem propriedade para falar sobre as novas descobertas a respeito da estrutura de um vírus ou o que significam as taxas de eficácia de uma vacina.
Selecionar a fonte ideal para falar sobre assuntos específicos exige um cuidado grande dos jornalistas, que precisam investir um tempinho extra na Plataforma Lattes ou em repositórios de publicações acadêmicas, como Scielo e PubMed.
2. O contexto e a ponderação
A ciência é, por excelência, o campo das verdades provisórias. Precisamos ter muito cuidado e ter um trabalho extra de apuração com certezas absolutas ou alegações de especialistas que fogem muito do consenso da área.
As reportagens também passam a fazer maior sentido quando se preocupam em explicar o assunto de forma detalhada para o público-alvo do veículo e, sempre que possível, dão um passo além: tentam relacionar aquela pauta com o dia a dia das pessoas.
Um exemplo fictício: vamos supor que foram publicados os resultados do estudo de um novo medicamento.
Quem pode se beneficiar dele? O fármaco já foi submetido à aprovação das agências regulatórias? O que dizem cientistas independentes, que não estão envolvidos diretamente na pesquisa?
E os cientistas que trabalharam com o fármaco, possuem algum conflito de interesses? Fazer essas perguntas (e colocar as respostas para elas ao longo da reportagem) traz contexto e ponderação, fatores vitais para um jornalismo científico de qualidade.
3. Comunicar incertezas
Esse talvez seja o nosso principal ponto fraco. Nós, como jornalistas, queremos abordar o que a ciência sabe, e nos preocupamos pouco com o que não se sabe. E isso, durante uma pandemia causada por um vírus novo e uma doença desconhecida, ficou escancarado, especialmente nos primeiros meses de cobertura, lá no início de 2020.
As incertezas eram gigantescas e pouco se conhecia sobre as formas de transmissão, prevenção, sintomas e tratamentos. Deixar mais claro em nossos conteúdos as perguntas para as quais ainda não há respostas é salutar.
Também podemos aproveitar cada oportunidade para explicar um pouco melhor como se constroem as evidências científicas e os consensos.
A meu ver, reportagens que trazem esse tipo de ângulo não apenas contribuem com informação, mas, no longo prazo, ajudam também na formação de uma sociedade mais capaz de usar o método científico para levantar dúvidas e encontrar os melhores caminhos para solucioná-las.
4. Menos aplausos e mais cobranças
É inegável que nós somos apaixonados pela ciência e pelos avanços que ela é capaz de trazer para a humanidade. A questão é que, várias vezes, deixamos a empolgação eclipsar nosso papel básico de jornalistas: cobrar, investigar, fiscalizar e contar histórias que algumas pessoas mantêm ocultas.
E o universo da ciência está cheio de pautas que podem ter essa pegada. Será que não existem pesquisadores que cometem assédio contra alunos e pós-graduandos? Ou que fazem mau uso de equipamentos e verbas vindas de dinheiro público?
Enquanto jornalistas, nós também precisamos ir atrás desses e de outros fatos mais espinhosos relacionados ao universo com o qual trabalhamos para cobri-los com seriedade e imparcialidade.
Os americanos têm até um termo para isso: em palestras durante conferências internacionais, já vi vários profissionais dos EUA insistirem que os jornalistas científicos devem ser menos cheerleaders (líderes de torcida, que animam o público e puxam aplausos para os atletas ou, no nosso caso, para os cientistas) e precisam ser mais watchdogs (cães de guarda) em suas pautas. E, no meu ponto de vista, isso é algo que ainda precisamos desenvolver mais no Brasil de 2022 em diante.
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Embora ainda não tenhamos sequer saído da pandemia de covid-19, a perspectiva futura não é nada positiva: os cientistas são praticamente unânimes em afirmar que essa é apenas a primeira crise de saúde pública que enfrentaremos ao longo do século 21.
Muitos desses especialistas dizem que o surgimento de novas pandemias não é questão de “se”, mas, sim, de “quando”. Resta saber se estaremos melhor preparados para enfrentar esses futuros desafios…
E mesmo se analisarmos o passado recente, a tendência de surtos e epidemias já vinha em alta desde 2009, quando tivemos o H1N1 pandêmico que brotou no México.
No Brasil, entre 2015 e 2019, foram várias as crises relacionadas com dengue, zika, chikungunya, febre amarela, sarampo…
A covid-19 continuará sendo pauta em 2022, mas não podemos nos esquecer dessas e de outras várias doenças que afligem a todos nós.
Não podemos ignorar também outro tema que entrará cada vez mais na pauta do dia a dia: as mudanças climáticas. Com o aumento da temperatura, as pessoas serão cada vez mais atingidas pelo aumento do nível do mar, por secas, por inundações, por climas extremos…
De 2022 em diante, precisaremos cada vez mais contar essas histórias a partir da perspectiva local, de como cada fenômeno acontece e como isso modifica a vida de cada um de nós.
Não é exagero afirmar, portanto, que o jornalismo científico será primordial para explicar às pessoas os novos e velhos problemas no ano que vem.
Falo aqui da pura prestação de serviços: em meio a momentos cercados de dúvidas e medos, nosso trabalho pode jogar luz sobre o que se sabe (e o que não se sabe, diga-se) e transmitir à população os meios de prevenção, as soluções e os demais cuidados. Falamos aqui de informações que distinguem, literalmente, vida e morte.
Dentro desse contexto, é nosso papel também falar das novidades, das pesquisas que são feitas, de como elas podem contribuir para resolver problemas. Também precisamos contar as histórias das pessoas afetadas e do que é feito (ou não é feito) pelo poder público para lidar com as situações vindouras.
O repórter e o editor especializado em ciência têm, portanto, uma vantagem competitiva nesse contexto: os profissionais da área sabem melhor do que ninguém quem deve ser procurado para comentar assuntos específicos, conseguem identificar falsas controvérsias ou consensos e podem colocar em contexto os últimos acontecimentos que abalam o ambiente e a saúde pública, entre vários outros tópicos.
Com tantas perspectivas pessimistas mundo afora, paradoxalmente, o cenário para o jornalismo científico em 2022 até é de um certo otimismo.
Por fim, gostaria de destacar alguns sites e ferramentas que podem ajudar o jornalista que deseja se especializar em algum filão da ciência em 2022.
Um bom ponto de partida é o curso Jornalismo científico: Da pandemia à crise climática, como melhorar a cobertura de ciência, feito pelo colega Thiago Medaglia e oferecido gratuitamente pelo Centro Knight para o Jornalismo nas Américas, da Universidade do Texas em Austin.
Outro material indispensável é o Manual de Edição em Jornalismo Científico do Massachussets Institute of Technology (MIT). Considerado um dos melhores materiais para aprender as particularidades da editoria, ele acabou de ganhar uma versão traduzida e adaptada para o português, com apoio do Centro Knight e do Instituto Serrapilheira. O manual está disponível gratuitamente para download.
Do ponto de vista da formação, sabemos que as faculdades de jornalismo no Brasil não costumam ofertar cursos ou aulas sobre a área científica, o que é uma pena. Mas temos ótimos cursos de extensão e pós graduação.
Os três principais e mais reconhecidos são oferecidos pelo Labjor, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), pelo Núcleo de Estudos da Divulgação Científica do Museu da Vida, da Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz), e pelo Amerek — Curso de Especialização em Comunicação da Ciência da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A Federação Mundial de Jornalistas Científicos também mantém um mapa com cursos na área espalhados pelo mundo.
A Agência Bori também fornece uma série de materiais e press releases, além de contar com um banco de fontes muito útil.
Por fim, para aqueles que desejam se reunir com colegas da área e discutir assuntos caros à profissão, sugiro que entrem em contato e participem da Rede Brasileira de Jornalistas e Comunicadores de Ciência (RedeComCiência). O grupo surgiu em 2018 e se propõe justamente a discutir quem somos, o que fazemos e como podemos melhorar.
Este texto faz parte da série O Jornalismo no Brasil em 2022. A opinião dos autores não necessariamente representa a opinião da Abraji ou do Farol Jornalismo.
Originalmente publicado sob o título “Amadurecido pela pandemia, jornalismo científico tem futuro promissor em 2022”
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