Na Amazônia, mais de 180 Povos Indígenas manejam suas paisagens por meio de diferentes cosmologias, assim gerando diversidade biocultural. A conservação dessa diversidade requer o reconhecimento de perspectivas locais (cosmologias) que favorecem a biodiversidade de acordo com sua própria compreensão do que é “Natureza”
Por Juliano Franco-Moraes, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
Se para os olhos de um leigo a floresta amazônica é uma floresta virgem e intocada, o que pesquisas têm demonstrado é que a Amazônia é um grande jardim, plantado por Povos Indígenas por meio da influência de diferentes aspectos socioculturais.
Na Amazônia, aquilo que não-indígenas entendem como “Natureza” (a floresta, os animais, os rios etc.), muitos Povos Indígenas entendem como ambientes culturais onde relações sociais, incluindo entre humanos e não-humanos, ocorrem. Tais relações se refletem em transformações da paisagem que têm gerado biodiversidade na região há milhares de anos.
Embora a Amazônia seja habitada há cerca de 13 mil anos, quando pensamos em antigas civilizações, pensamos nos Incas, Astecas, Maias ou Egípcios, provavelmente por essas civilizações terem modificado suas paisagens por meio de grandes arquiteturas, como as pirâmides. Entretanto, modificações milenares nas paisagens amazônicas têm sido descobertas nas últimas décadas, colocando a região, e suas antigas populações humanas, no mesmo patamar dessas que aprendemos a cultuar como grandes civilizações.
Na Amazônia, devido a inexistência de rochas e à existência de solos e florestas em abundância, as modificações das paisagens ocorreram por outros meios, como na formação de Terra Preta de Índio, geoglifos, montes elevados e florestas domesticadas.
Uma pesquisa na qual colaborei demonstrou que tais modificações ocorreram, e ainda ocorrem nos dias de hoje, por meio de práticas de manejo realizadas por Povos Indígenas que alteraram o solo e a floresta, seja por meio do plantio de espécies úteis – como a castanheira (Bertholletia excelsa), seringueira (Hevea brasiliensis), açaí (Euterpe oleracea) e tantas outras –, pela retirada de espécies não úteis, pelo uso do fogo e diversas outras práticas.
No entanto, como tais práticas são fundamentadas culturalmente é algo pouco estudado, pois pesquisas tendem a negligenciar o papel da cultura em influenciar a maneira como o manejo indígena modifica a biodiversidade florestal.
A importância de aspectos socioculturais para a conservação da Amazônia
Em 2021, eu e colaboradores mostramos que a maneira como Povos indígenas da Amazônia entendem o mundo e o conceito de “Natureza” influencia as transformações das paisagens que estes fazem ao seu redor. Isso inclui uma série de diferentes relações sociais que estes povos apresentam entre si e entre eles e não-humanos (animais, plantas, espíritos etc.).
Seja por entender que a floresta é um ambiente ancestral, um ambiente espiritual ou um ambiente de outros donos não-humanos, tais percepções influenciam a maneira como, por milhares de anos, Povos Indígenas têm produzido biodiversidade e conservado a maior floresta tropical do planeta.
Essa compreensão acerca das explicações da realidade e de como o cosmos funciona é denominada, em Antropologia, por cosmologia. Em Gana, por exemplo, a cosmologia de povos originários já vem fazendo parte da agendas de conservação de áreas protegidas, evidenciando a importância da percepção de mundo desses povos na proteção da natureza.
Na Amazônia, existem mais de 180 Povos Indígenas que entendem o mundo e a floresta de diferentes formas, de modo que a proteção desses ambientes depende dessas percepções e conhecimentos, ou seja, depende das cosmologias locais. Essas cosmologias poderiam ser incluídas nas agendas de conservação da Amazônia.
Diferentes cosmologias influenciam diferentes formas de promoção/conservação da biodiversidade
Em uma pesquisa publicada em 2019, eu e colaboradores mostramos que, para os Baniwa, habitantes da região do Alto Rio Negro, Amazonas, falantes de uma língua Arawak, a floresta representa um conjunto de manchas manejadas. Da perspectiva Baniwa, muitas manchas florestais possuem nomes e são regiões abarcando moradias e roças ancestrais, ou seja, florestas atuais que um dia já foram “jardins” de seus antepassados.
As florestas manejadas pelos ancestrais dos Baniwa possuem espécies de árvores diferentes das de florestas não-manejadas. Ademais, quando comparadas às não-manejadas, florestas manejadas possuem abundância de espécies úteis maior e solo com pH menos ácido, além de biomassa igual. Estas florestas são espaços socioculturais onde um conjunto de práticas tradicionais ocorreram e ocorrem com o intuito de se perpetuar a ancestralidade Baniwa, de modo que informações ecológicas e socioculturais são passadas de geração a geração para que o manejo seja realizado e a diversidade local seja mantida.
Recentemente, mostramos em um outro artigo científico que no norte do estado do Pará, os Zo’é, falantes de uma língua Tupi, entendem a floresta como um conjunto de territórios humanos e não-humanos. Para os Zo’é, todos os seres possuem seus territórios, e estes podem estar sobrepostos, já que um mesmo lugar poder conter múltiplos territórios a depender do ponto de vista de seus habitantes.
Os Zo’é se relacionam com não-humanos através de relações sociais, uma vez que, para eles, todos os seres possuem sociabilidade. Tal compreensão cosmológica leva os Zo’é a promoverem uma diversidade de manchas florestais em diferentes etapas de desenvolvimento, assim como no caso Baniwa. Porém, diferentemente dos Baniwa, os Zo’é não as entendem como ambientes ancestrais necessariamente, mas sim como territórios de seres não-humanos.
Para os Zo’é, a promoção destas manchas florestais possibilita a existência de territórios destes seres não-humanos, algo essencial para o bem-viver de todos. Tal manejo aumenta a biodiversidade da região, de modo que aspectos socioculturais (cosmologia,
relações sociais, práticas de manejo etc.) são, parcialmente, responsáveis pela biodiversidade regional.
A proteção da Amazônia requer a proteção dos povos indígenas
A herança biocultural de uma região engloba o conjunto de paisagens resultantes de relações bioculturais, isto é, de relações entre a diversidade biológica e cultural, de modo que tais relações moldam as paisagens e também as cosmologias locais. Na Amazônia, mais de 180 Povos Indígenas manejam suas paisagens por meio de diferentes cosmologias, assim gerando diversidade biocultural. A conservação dessa diversidade requer o reconhecimento de perspectivas locais (cosmologias) que favorecem a biodiversidade de acordo com sua própria compreensão do que é “Natureza”.
Entender o manejo e a biodiversidade amazônica através das cosmologias indígenas é essencial para respeitar as populações locais e garantir maior conservação da herança biocultural. Tal entendimento pode contribuir com avaliações dos resultados locais das práticas de gestão territorial sem causar injustiça social, gerando assim uma proteção territorial que beneficia tanto indígenas como não-indígenas. Se quisermos conservar a diversidade biológica e cultural da Amazônia, o primeiro passo é reconhecer a importância dos Povos Indígenas como agentes cruciais para que isto aconteça.
Juliano Franco-Moraes, Doutor em Ecologia, Consultor de Povos Indígenas na JGP Consultoria Ambiental e Pós-doutorando em Antropologia, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
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