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O jornalismo científico não deve buscar a enganosa neutralidade do “ouvir vários lados”
Em ciência, verdades nunca são definitivas, mas um relativo consenso sobre o que é o melhor conhecimento disponível no momento sobre um tema importa
Por Luiza Caires
Jornalista, mestre em Comunicação pela ECA-USP e editora de Ciências do “Jornal da USP”
Em 2020, a pandemia tornou o jornalismo científico de coadjuvante à estrela no palco das notícias. Desde que trabalho na área, nunca vi termos tanta atenção e tanto espaço. O que, é claro, também expôs nossos calcanhares-de-aquiles, problemas diversos que precisamos corrigir, e problemas novos que surgiram, tanto para uma geração de profissionais que cobre sua primeira pandemia, como para as que já passaram por outra, como a de HIV/Aids nas décadas de 1980-90, mas que trouxeram questões completamente diferentes das de hoje.
Em primeiro lugar, em 2021 o jornalismo científico vai ser chamado a ser mais investigativo. Mais do que nunca, não poderá se acomodar à espera de releases de publicações e universidades. Com exceções, este ano, no Brasil, ficamos devendo um pouco em boas histórias com esta característica.
Além disso, num período em que políticos com tendências antidemocráticas governam alguns países, há muitas informações a serem reveladas, parte delas envolvendo questões em que a ciência e a política se misturam. Assim, práticas de outras especialidades devem ser mobilizadas.
Os jornalistas de ciências e de dados já trabalham bastante em parceria (muitos profissionais possuem as duas competências). Mas essas são trocas que podem ser estendidas para outros campos.
Um bom jornalista de ciências não deve apenas ser capaz de transformar informações complexas da biologia, ciências exatas e humanas em notícias compreensíveis, e que façam sentido na vida do público. Precisa também entender como essas notícias conversam com o ambiente político e social da atualidade.
E conhecer razoavelmente o campo das políticas científicas, isto é, como cada país, governo e instituição escolhe a ciência em que vai investir seus recursos, como isso se dá na prática, além dos debates e disputas de visão de mundo e poder que aí se dão.
Órfãos das fontes oficiais
Nos Estados Unidos, ouvimos depoimentos de colegas como a jornalista Maryn McKenna, do portal Wired, dizendo que nunca, na cobertura de saúde, viu o CDC (Control Diseases Center) tão ausente e a Casa Branca tão hostil para atender a imprensa.
Segundo ela, tem sido muito difícil falar com representantes do CDC, e grande parte das notícias está tendo que ser feita com base em informações vazadas ou por entrevistas “off the record” (com o gravador desligado), sem identificar as fontes – funcionários do órgão que simplesmente temem perder seus empregos.
No Brasil, alguns posicionamentos do Ministério da Saúde foram apontados pela própria comunidade científica como não científicos ou, no mínimo, afetados mais do que o tolerável pelo cenário político-ideológico.
Dois se destacam: o atraso na divulgação dos boletins diários da pandemia, e que ainda davam questionável destaque ao número de “recuperados” (parcialmente contornado com a iniciativa do consórcio de veículos de imprensa, que tem reunido estes dados); e os casos dos medicamentos sem comprovação contra a covid-19, hidroxicloroquina e nitazoxanida, propagandeados por autoridades.
Esta última droga, celebrada pelo MCTIC (Ministério da Ciência, Tecnologia, Informação e Comunicações) com supostos resultados de um estudo científico apresentados em peça publicitária antes da divulgação em periódicos.
O MCTIC é outra pasta que também abandonou os pudores da seriedade científica e o rigor dos dados – como já havia nos mostrado, antes da pandemia, o caso dos embates com cientistas do Inpe, que resultaram até em demissões. É mais uma fonte oficial que, mais do que nunca, não pode ser ouvida sem crítica pelos jornalistas de ciência, mesmo com os vários profissionais sérios que continuam por lá.
Tudo isso nos deixou órfãos, como profissionais, de um porto seguro para recorrer atrás das informações mais consolidadas. Para questões de saúde, como a pandemia, o Ministério da Saúde seria o local mais fácil, mas não é mais tão óbvio assim.
Em ciência, verdades nunca são definitivas, mas um relativo consenso sobre o que é o melhor conhecimento disponível no momento sobre um tema importa. Ainda mais quando estamos lidando com mais incerteza do que o usual, por estar diante de um objeto de pesquisa totalmente novo, como o sars-cov-2.
Assim, em 2021 continuaremos a aprender como navegar nesse cenário de mais dúvidas que o habitual, sem o cais de entidades, antes modelos, para atracarmos.
O jornalismo científico do futuro também não poderá buscar a enganosa neutralidade do “ouvir vários lados”
Não vejo incompatibilidade com a profissão ou demérito no fato de o jornalismo científico se assumir aliado aos valores da boa ciência. Isso significa não dar espaço para o que a própria comunidade científica filtra: pesquisas mal desenhadas, incipientes, com conclusões precipitadas, e inferências que não podem ser feitas.
Ao longo de 2020, a imprensa evoluiu nesse aspecto – no início da pandemia ainda era mais comum ela dar espaço para debates como a efetividade ou não do isolamento social, sendo que cientistas defensores do “não” eram tão minoritários quanto os que ainda negam o aquecimento global, por exemplo.
Foco na sindemia
Em 2021 o coronavírus permanecerá presente, e o jornalismo científico ainda vai colocar a maior parte do seu foco nele. Mas eu espero que, mais que para a pandemia, voltemos nossos olhos para a sindemia, assim como Richard Horton insta governos e cientistas a fazerem.
Em editorial na revista The Lancet, ele aplica à covid-19 o conceito de duas ou mais condições interagindo de forma a causar mais danos do que a mera soma dessas doenças ou fatores. Enfermidades como câncer, diabete, obesidade – as chamadas comorbidades – mas também seus determinantes sociais.
Lidar com a covid-19 sob esse ponto de vista envolveria não apenas combater a propagação do vírus, mas tomar medidas para modificar o contexto social das pessoas mais vulneráveis a ele, o que abrange educação, emprego, habitação, alimentação e meio ambiente. No que cabe ao jornalismo, é trazermos na cobertura de ciências esses aspectos, que podem e devem ser tratados cientificamente.
Por último, também relacionado a contextos, que em 2021 possamos cobrir mais a pandemia brasileira, que é totalmente diferente da pandemia nos países da Europa, nos EUA, para citar os locais que mais têm destaque no nosso noticiário. São diversas pandemias que só têm em comum o mesmo vírus como agente causador, mas que se dão em contextos diversos de propagação, sistemas de saúde, organização urbana, clima, cultura, condições sociais.
Texto originalmente publicado com o título “Qual jornalismo científico seremos chamados a fazer em 2021?”, na série Projeções para o Jornalismo no Brasil em 2021, iniciativa da Abraji e do Farol Jornalismo.
Conheça aqui os outros textos da série.