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Manual básico de meditação em tempos de distanciamento social
Meditação é basicamente parar, observar e aprender
Por Marcelo Firpo
Imagem de Silentpilot por Pixabay
Minha motivação ao escrever este texto, em plena pandemia do coronavírus, é simples: eu não tenho muitas habilidades ou talentos para oferecer às pessoas neste momento, mas meditar eu sei.
E meditar, nos últimos anos, me ensinou a não me desesperar tanto, a não entrar em pânico, a não me deixar levar por pensamentos angustiados e emoções perturbadoras.
Acho que isso pode ser de alguma utilidade nesse momento, por isso resolvi oferecer este texto.
Posto isso, vamos começar.
SOBRE O TIPO DE MEDITAÇÃO QUE VAMOS APRENDER
Existem dois tipos principais de meditação na tradição budista: shamatha e vipassana. Shamatha diz respeito à tranquilidade, enquanto que vipassana tem a ver com o insight, isto é, com passar a perceber as coisas de um jeito diferente.
Uma nasce de dentro da outra. Ou seja, pra conseguir meditar em vipassana, é preciso antes estabelecer um estado de tranquilidade, por meio de shamatha. Pense num copo cheio de água com terra. Se você deixar o copo parado, depois de um tempo a terra vai pro fundo do copo e a água fica cristalina. É mais ou menos a mesma coisa na meditação: shamatha é deixar a terra descansar no fundo do copo para que seja possível ver com clareza, e aí criam-se as condições para vipassana.
Logo vamos ver como isso se dá na prática. Antes, porém, vamos tratar da postura física ao meditar.
SOBRE A POSTURA FÍSICA NA MEDITAÇÃO
Existem várias formas possíveis de meditar: com as pernas cruzadas em lótus, meio-lótus ou da forma birmanesa, sentado sobre uma almofada; ajoelhado com a sustentação de um banquinho baixo de madeira, ao estilo zen; ou mesmo sentado numa cadeira.
Pessoas com problemas nos joelhos, por exemplo, podem preferir o banquinho ou cadeira, mas o mais importante, em todas as posturas, é manter a coluna reta, com a parte de cima da barriga levemente projetada pra frente. Se você for meditar numa cadeira, não use o encosto.
As mãos podem ficar simplesmente repousadas sobre os joelhos, em qualquer uma das posturas, ou como se vê na figura. O queixo fica ligeiramente encaixado, apontando pra baixo, o que provoca uma sensação de alongamento da nuca. Os olhos podem ficar fechados ou semi-abertos, relaxados, sem olhar para nada em especial.
Idealmente o ambiente deve ser quieto e arejado, mas, se não for, isso não é um grande problema. A respiração é tranquila e natural, mas você pode começar com uma ou duas inspirações mais profundas.
Ok, a postura física é essa. Mas como é que se medita?
SOBRE A POSIÇÃO MENTAL NA MEDITAÇÃO
Como dissemos antes, shamatha é a meditação que leva à tranquilidade da mente. Como você já deve ter notado, em geral estamos com a mente bem agitada, pensando em várias coisas ao mesmo tempo e vivenciando uma cascata de emoções. É como se a gente vivesse dentro de um liquidificador ligado a mil e, na maior parte do tempo, nem mesmo conseguíssemos nos dar conta disso.
E como shamatha tranquiliza a mente?
Existem dois tipos de shamatha: com objeto e sem objeto. Mas o que seria um objeto? Um objeto é um ponto de referência para o qual a gente vai voltar sempre que se perder.
Quer um exemplo de objeto? A respiração. Focamos na nossa respiração, no inspirar e no expirar. Ficamos conscientes do fato de que estamos respirando. E tentamos nos manter assim.
Só que, de repente, a gente vai se pegar pensando em alguma coisa que não tem nada a ver com a respiração. Você estava lá, superconsciente da sua inspiração, da sua expiração e, de repente, do nada, se pegou pensando no coronavírus. Ou nos boletos pra pagar no mês que vem.
Ou numa tia que você não vê faz tempo. Muitas vezes você vai se dar conta de que está perdido há vários minutos, pensando em uma determinada coisa sem nem se dar conta em COMO sua mente chegou lá. Um pensamento foi encadeando no outro e você nem se deu conta. E agora?
Quando você se der conta de que está pensando em outra coisa, você volta para o seu objeto, o seu ponto de referência. Isto é, você retorna a sua atenção para a respiração, sem achar que cometeu um erro, sem achar que está fazendo tudo errado, sem se cobrar ou se julgar. A técnica é justamente essa: se perder e voltar, se perder e voltar, quantas vezes forem necessárias.
Pense comigo: se você conseguisse focar a atenção na sua respiração por cinco, dez, quinze minutos direto, você não precisaria meditar, né? Como a gente não consegue, o treino é justamente se dar conta que se perdeu, “acordar”, e então voltar.
Com o tempo, você vai conseguir focar por mais tempo na respiração. E também vai demorar menos tempo até se dar conta de que perdeu o foco, que foi arrastado pelos pensamentos.
OK, MAS QUAL A UTILIDADE DISSO?
No dia a dia a nossa mente se comporta como um macaco, sempre pulando de galho em galho. Está sempre em movimento e muitas vezes nos leva a lugares não muito agradáveis. Muitas vezes também respondemos ao ambiente externo sem pensar, sem refletir. Alguém nos fala alguma coisa que não gostamos e, antes de nos darmos conta, já estamos metidos numa discussão, numa briga. Não temos tempo de reagir de forma diferente. Não temos escolha.
E é justamente essa a mágica que shamatha faz: nos dá tempo. Torna possível escolher.
Quanto mais praticarmos na almofada, mais estabilidade teremos para enfrentar os desafios fora dela, na vida real. Alguém nos diz alguma coisa desagradável: se praticamos shamatha o suficiente, conseguimos pensar antes de responder, conseguimos escolher a melhor resposta ou mesmo conseguimos escolher não dar resposta nenhuma.
Shamatha nos dá essa liberdade de não sermos arrastados pelos acontecimentos do lado de fora ou pelas nossas emoções do lado de dentro.
E existem muitos tipos de shamatha com objeto: você pode focar na respiração, mas também pode focar o olhar em algum ponto fixo à sua frente, tipo uma pedrinha ou mancha na parede; também pode ser um objeto interno, como um mantra que você recite, ou uma imagem que você visualize. O que não muda é o seguinte:
a) você foca no objeto;
b) sua atenção se desvia e você se perde do objeto;
c) você se dá conta disso;
d) você volta pro objeto.
Lá em cima eu escrevi que também tem shamatha sem objeto, né? Quer saber como é?
Na meditação shamatha sem objeto, o seu ponto de referência é o próprio estado de tranquilidade. Em vez do foco ser fechado num objeto, ele é totalmente aberto.
Você percebe tudo acontecer (os barulhos da rua, os pensamentos na sua mente, o cachorro da vizinha latindo, um ônibus ao longe, a coceira na sua orelha), mas não se deixa ser arrastado por nada. E, se acontecer, você volta pro seu estado de tranquilidade inicial. “Ah, não consigo achar mais ele! o que eu faço?” Bom, aí você volta pro seu objeto, pra sua respiração, que está sempre lá.
Importante: tudo que acontece durante a meditação é meditação. Se um carro na rua der uma freada forte, isso é meditação. Se o cachorro da vizinha latir de novo, isso é meditação.
Evite julgar a sua meditação, com pensamentos do tipo “Tá muito barulhento hoje, não tá rolando.” ou “Se a vizinha não fizesse tanto barulho com as panelas, minha meditação seria bem melhor.”
Meditação é manter-se aberto ao que quer que surja, com tranquilidade, sem autojulgamentos ou preconceitos. É reduzir a responsividade, essa ânsia de responder a tudo que acontece.
Resumindo shamatha: é estabelecer um estado de tranquilidade sem julgamentos, no qual as coisas acontecem, mas não têm o poder de te perturbar, de te arrastar pra longe, de afetar a sua paz. E não custa enfatizar: quanto mais você praticar na almofada, mais você vai se beneficiar fora dela, em termos de equilíbrio e saúde mental.
E VIPASSANA?
Bom, vipassana é como se fosse a fase seguinte: uma vez que você tenha estabelecido uma certa tranquilidade, você começa a se dar conta de coisas que sempre estiveram lá, mas que você nunca percebeu por causa da movimentação excessiva da sua mente. Não se trata de fabricar nada, mas de ver o que sempre esteve lá.
Os insights de vipassana têm a ver com a própria natureza da realidade. É um pouco difícil descrevê-los, porque eles surgem da experiência direta, mas vamos tentar: você pode, por exemplo, perceber um pensamento surgindo na sua mente, e se perguntar: de onde veio esse pensamento?
Ele estava em algum lugar antes de surgir na minha mente? Do que ele é feito? O que sustenta ele agora? Pra onde ele vai depois? Quem está pensando esse pensamento? As respostas que naturalmente surgirem são os insights. De novo: não são respostas criadas, fabricadas. De certa forma, você sempre soube disso, só não percebia antes.
Aos poucos, com a prática de vipassana alicerçada em shamatha, você vai começar a se dar conta de que as coisas não têm a solidez que elas parecem ter.
As suas preocupações, os seus medos, por exemplo: eles vão começar a perder o poder que eles têm hoje sobre você. As coisas não vão te abalar com tanta frequência. E, se abalarem, vai ser por menos tempo e com menor intensidade. Em uma palavra, você vai começar a ser mais livre.
Por isso, agora que você já sabe o básico do básico da meditação, fica a dica: pratique um pouco todos os dias, de preferência duas vezes por dia, de manhã ou de noite, ou quando ficar melhor pra você. Coloque o celular na contagem regressiva por um tempo que seja confortável pra você: cinco, dez, quinze minutos. Depois você pode ir aumentando. O importante mesmo é a frequência.
Existem muitos apps de meditação, mas eu prefiro não usar nenhum e praticar só com o silêncio mesmo.
Com um mês de prática eu tenho certeza de que você vai sentir mudanças significativas na sua vida. Veja bem: eu não estou dizendo que os problemas vão deixar de acontecer: eu estou dizendo que você vai aprender a lidar com eles de uma forma mais estável e tranquila.
Eu sei: é superdifícil acrescentar um novo hábito no seu dia a dia, mesmo estando em quarentena. Pra isso, a minha dica é: cole a meditação num hábito que você já tenha.
Eu, por exemplo, comecei meditando sempre antes de escovar os dentes, de manhã e de noite. O hábito que você já tem vira um lembrete pro hábito que você quer estabelecer.
Outra dica: algumas sessões vão ser melhores, outras piores, e isso é natural. Não se apegue a nenhuma delas e continue praticando, isso é o mais importante. Não alimente expectativas sobre como a sua prática deve ser.
Se você ficar feliz com a sua meditação, apenas olhe pra esse sentimento. Se ficar decepcionado, faça o mesmo. O que quer que surja na sua experiência, apenas observe.
Se sentir uma coceira, evite coçar: observe a coceira e perceba que, como todas as coisas, ela surge, dura um pouco e depois desaparece. Quanto mais você conseguir apenas observar, mais você vai aprender sobre a verdadeira natureza de todas as coisas.
Meditação é basicamente parar, observar e aprender.
E DEPOIS?
A meditação é uma prática que faz parte de um contexto maior. No budismo, por exemplo, ela é um dos passos do caminho de oito passos, que o Buda descreveu como uma forma de nos libertarmos de todo e qualquer sofrimento, incluindo aí o medo da doença e da morte.
Esse texto aqui foi mais pra dar uma introdução sobre a meditação. Mas, se você se interessar mais pelo tema como um todo, eu sugiro pesquisar os vídeos, textos e livros do Lama Padma Samten, no site do CEBB. Nesta página aqui também tem vários ensinamentos sobre meditação.
Outros mestres altamente recomendáveis são Chagdud Rinpoche, Jetsunma Tenzin Palmo, Lama Tsering Everest, Dzongsar Khyentse Rinpoche, Elizabeth Matthis Namgyel, Dilgo Khyentse Rinpoche, Lama Thubten Yeshe, Alan Wallace, Shunryu Suzuki, Phakchok Rinpoche e Tenzin Wangyal Rinpoche. Cada um deles é um oceano de sabedoria. Vale muito a pena ver seus vídeos e ler seus livros, porque isso vai fortalecer a sua prática.
Ah, sempre que você terminar uma sessão de meditação, compartilhe os méritos da sua prática com todos seres. Isso ajuda a reduzir o autocentramento, que é a raiz de todos os problemas.
Espero que este texto possa ser útil para ampliar a sua estabilidade e tranquilidade frente a quaisquer desafios que a vida possa apresentar.
Obrigado pela oportunidade e pela sua atenção. E que todos os seres possam se beneficiar.