Mudanças climáticas ameaçam a segurança alimentar, desde a produção até o consumo

 Mudanças climáticas ameaçam a segurança alimentar, desde a produção até o consumo

Foto: Agência Brasil. Reprodução

Ecologia pode atuar no combate e na prevenção da insegurança alimentar desde o aumento da produção até a cultivo sustentável de alimentos 

Por Bianca Bosso
Revista Ciência e Cultura

Manter uma rotina alimentar equilibrada e saudável é um fator essencial para garantir o bom funcionamento do organismo, prevenindo a desnutrição, doenças crônicas, cardiovasculares e até mesmo alguns tipos de câncer, segundo a Organização Panamericana de Saúde (OPAS). No entanto, o desafio de garantir uma dieta adequada começa bem antes da seleção dos produtos nas prateleiras e exige que uma série complexa de processos funcione em harmonia, incluindo as técnicas usadas para o cultivo, as estratégias de armazenamento e, em especial, as condições do clima. Na cadeia de eventos que leva os alimentos do campo até o prato, pequenas alterações na temperatura ou no regime de chuvas, por exemplo, podem ser decisivas e dificultar o acesso de uma parcela significativa da população à alimentação – tornando-a propensa a um estado de insegurança alimentar.

Um estudo divulgado pela Administração Nacional da Aeronáutica e Espaço (NASA) em julho de 2024 sugere que diversas regiões do globo podem ficar tão quentes e úmidas que serão inabitáveis em 50 anos. Os dados confirmam a tendência observada pelo Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC) em relatório de 2023, que revela um aumento de 1,1 ºC na superfície terrestre ao comparar os períodos de 2011 a 2020 com 1850 a 1900. Embora essa elevação na temperatura possa parecer pequena, uma pesquisa publicada em 2019 na revista americana Plos One aponta que os efeitos sobre a produção de alimentos já começaram a acontecer. Os resultados mostram que a produtividade de culturas como óleo de palma, milho, cana-de-açúcar e arroz diminuiu em várias áreas do planeta e reduziu o consumo calórico diário em 27 dos 53 países vulneráveis analisados.

“Quando a produção de comida é afetada pelo clima, a menor disponibilidade de insumos pode dificultar o acesso aos alimentos de formas diferentes.”

Quando a produção de comida é afetada pelo clima, a menor disponibilidade de insumos pode dificultar o acesso aos alimentos de formas diferentes. Ao mesmo tempo em que algumas variedades podem ter seus preços elevados, outras podem nem sequer chegar aos supermercados em certas regiões, gerando níveis distintos de insegurança alimentar. “Esse gradiente vai desde reduzir as porções do que se come até a fome”, explica Felipe Pimentel Lopes de Melo, biólogo e pesquisador do Departamento de Botânica da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). “Ele começa a se agravar quando substituímos alimentos de boa qualidade por refeições com valor calórico alto e nutricional baixo e inclui também a necessidade de saltar as refeições”, completa. Entre 2020 e 2022, 70,3 milhões de brasileiros estavam em insegurança alimentar moderada ou grave – número que caiu para 39,7 milhões de pessoas entre 2021 e 2023 segundo relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) divulgado no primeiro semestre deste ano. Mesmo com a diminuição, esses números continuam altos – e podem voltar a crescer, na medida em que as mudanças climáticas afetarem ainda mais a produção e o acesso aos alimentos.

Efeitos na pesca, economia costeira e acesso aos pescados

Enquanto secas e enchentes ameaçam a agricultura, a elevação do nível e da temperatura do mar pode alterar o ambiente costeiro e prejudicar a pesca. É o que conta a equipe do oceanógrafo José Ángel Pérez, professor e pesquisador do Centro de Ensino Superior em Ciências Tecnológicas da Terra e do Mar da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI), em artigo publicado na revista Brazilian Journal of Aquatic Science and Technology. O grupo de cientistas estudou como esses fatores combinados podem causar modificações na composição de espécies que frequentam a costa de Santa Catarina (SC), repercutindo na dieta e na economia local em um evento chamado de “tropicalização” das zonas subtropicais. “Desde 2013 temos um aumento da presença de espécies com preferência por águas mais quentes nas capturas e uma escassez das espécies de águas frias”, comenta o autor. “Isso está acontecendo porque, numa região subtropical, como onde a costa de Santa Catarina está inserida, a movimentação de espécies tende a resultar em uma ‘invasão’ de espécies de águas tropicais, que estão encontrando habitats adequados para seu desenvolvimento, e uma retração de espécies de águas temperadas cálidas que visitam nossa região durante o inverno”, comenta o autor. (Figura 1)

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Figura 1. Elevação do nível e da temperatura do mar altera o ambiente costeiro e prejudica a pesca.
(Foto: Agência Brasil. Reprodução)

José Pérez destaca que essa transformação traz à tona dois aspectos relevantes: as diferenças de valor nutricional entre esses tipos de pescado e o valor de mercado. “Se peixes mais baratos e/ou nutritivos continuarem sendo oferecidos num cenário tropicalizado, o impacto pode ser baixo. Mas, caso se tornem mais comuns espécies tropicais mais caras e/ou menos nutritivas, como os camarões, pode significar um déficit na oferta de alimentos para a maior parte da população”, ressalta.

Aumento na disseminação de pragas

Além da migração, a segurança alimentar e econômica de comunidades costeiras também podem ser afetadas pela propagação de microrganismos e toxinas. O pesquisador traz como exemplo processos relacionados com as enchentes, que, segundo a ONU, foram responsáveis por 53% das mortes ocorridas em eventos climáticos extremos na América Latina em 2023. “As enchentes provocam uma grande vazão de água das bacias hidrográficas para as regiões costeiras. Com isso, há um aporte excepcional de nutrientes e matéria orgânica que favorece a proliferação de microorganismos, cujo crescimento poderia estar normalmente limitado nesse tipo de ambiente”, explica José Pérez. Algumas das consequências dessa proliferação anormal podem incluir um aumento repentino no consumo do oxigênio da água, que leva à morte de peixes, e a proliferação de espécies que produzem toxinas nas águas, como os dinoflagelados – “microalgas” responsáveis pelas marés vermelhas. “Há, inclusive, a possibilidade de surtos de bactérias patogênicas”, complementa.

A agricultura também está propensa a perdas produtivas devido ao aumento de pragas, que encontram nas novas condições climáticas um habitat ideal. Segundo estudo apoiado pela ONU, diversos organismos causadores de doenças em plantas já estão se tornando mais destrutivos em decorrência das alterações no clima, enquanto outros, como gafanhotos-do-deserto, devem mudar sua distribuição geográfica e atingir culturas em diferentes partes do planeta. Os impactos para a qualidade e disponibilidade de comida podem ser catastróficos. Por exemplo, conforme publicação da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), bastam apenas 10 desses gafanhotos, que são capazes de comer vegetais equivalentes ao seu peso em um dia, para devastar uma mangueira. Com menos alimentos disponíveis para a alimentação humana e pecuária, não somente os preços de vegetais, como também os valores das carnes, de laticínios e outros produtos alimentícios tendem a crescer, dificultando o acesso a refeições variadas e de boa qualidade nutricional.

“A perda de biodiversidade enfraquece e põe em xeque os sistemas produtivos alimentares industriais.”

Em contrapartida, os agroquímicos, como pesticidas, podem se tornar presença ainda mais marcante nas dietas. Segundo a ONU, cerca de 40% da produção agrícola global já é atualmente perdida para as pragas e o uso de produtos químicos pode ser ampliado como uma tentativa para driblar a intensificação desse problema. Junto aos possíveis danos à saúde, um efeito rebote esperado é o desenvolvimento de uma maior resistência por parte das pragas contra esses produtos, que podem fazer com que os insetos, fungos e outras infestações fiquem cada vez mais fortes, destrutivas e adaptáveis às novas estratégias de manejo.

É possível promover segurança alimentar em tempos de crise climática?

Enquanto as pragas ganham força, a perda de biodiversidade enfraquece e põe em xeque os sistemas produtivos alimentares industriais. “Na agricultura industrial, a variação é indesejada. Isso significa que as plantações quase sempre são baseadas em uma diversidade genética muito baixa, ou seja, em clones ou réplicas do mesmo cultivar, que se comportam da mesma maneira sob as mesmas condições”, explica Felipe de Melo. O pesquisador comenta que, embora essa prática permita a produção em grande escala, depende de condições extremamente constantes e controladas. “O modelo industrial de agricultura é pouquíssimo resiliente às mudanças climáticas. No Brasil, temos uma agricultura que depende de chuvas ou de uma irrigação muito dispendiosa, da fertilidade natural do solo e de polinizadores. Qualquer disruptura climática gera quebra de safra, prejuízos enormes, escassez e flutuações absurdas de preço”, diz.

Para ele, é indispensável a necessidade de se investir em modelos mais versáteis de produção, que se adaptem melhor às condições climáticas e socioeconômicas, para garantir a segurança alimentar a longo prazo. “Precisamos de uma agricultura que trabalhe em consonância com os sistemas naturais e olhando para o futuro, sabendo que as mudanças climáticas estão aí e vão ficar e que, portanto, a gente precisa de medidas de adaptação”, argumenta o biólogo, que aposta na fomentação da agricultura familiar e de pequeno porte como uma alternativa viável para a prática de uma agricultura mais sustentável, adaptável e resistente às mudanças climáticas. (Figura 2)

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Figura 2. Agricultura familiar e de pequeno porte é uma alternativa para uma agricultura mais sustentável e resistente às mudanças climáticas.
(Foto: Nilmar Lage/ Greenpeace. Reprodução)

Felipe de Melo também aponta para a necessidade de recrutar os conhecimentos sobre ecologia para desenvolver métodos mais resilientes para a distribuição de alimentos, desde o plantio até as prateleiras. “A ecologia pode atuar no combate e na remediação de todos esses níveis de insegurança alimentar. Seja na produção e no aumento da quantidade de alimentos, como também na produção sustentável de alimentos que possam ser baratos, acessíveis, que façam uso da biodiversidade local para fornecer nutrientes diversos, com valor nutricional e cultural. Tudo isso é papel da ecologia”, afirma.

“Há necessidade de recrutar os conhecimentos sobre ecologia para desenvolver métodos mais resilientes para a distribuição de alimentos, desde o plantio até as prateleiras.”

Em sintonia com as ideias defendidas pelo pesquisador, o livro Frutas da Floresta: o Poder Nutricional da Biodiversidade Amazônica, lançado em março de 2024, busca estimular uma alimentação mais consciente e conectada com a natureza para fortalecer a segurança alimentar. A obra apresenta dados nutricionais e alimentares de diversas frutas presentes no bioma amazônico, como o jenipapo, a castanha-do-Brasil e o cupuaçu, que, apesar de terem alto valor nutritivo, são pouco exploradas na dieta local. O objetivo é expandir as opções alimentares disponíveis para as comunidades ribeirinhas, que enfrentam alguns dos níveis mais graves de insegurança alimentar e desnutrição no Brasil. “Precisamos de mecanismos para trabalhar com as contribuições da natureza para as pessoas, fazer com que nossas práticas agrícolas trabalhem em cooperação com a natureza e não contra ela”, conclui Felipe Melo.


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