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Ivermectina e o viés de mediocridade
Uma coisa em que insisto há tempos é na importância de se estudar as metodologias empregadas na promoção de pseudociências, como ferramenta para desenvolver o senso crítico na hora de avaliar a metodologia usada em estudos de áreas, em geral, mais robustas e legítimas
Por Carlos Orsi*
Saiu mais um estudo sobre o impacto do antiparasitário ivermectina no controle da COVID-19. O artigo que descreve os resultados vem, como seria de se esperar, recheado de dados e análises estatísticas, mas os autores fazem o favor de oferecer uma interpretação em linguagem simples. Que é a seguinte:
“É improvável que a ivermectina para COVID-19 proporcione benefício clinicamente significativo na recuperação, nas internações hospitalares ou nos desfechos de longo prazo. Mais ensaios com ivermectina para a infecção por SARS-Cov-2 em populações vacinadas parecem injustificados”.
Em outras palavras, o fármaco é, na prática, inútil para o controle da COVID-19, e insistir em tentar provar o contrário, ainda mais agora que há vacinas seguras e eficazes disponíveis, será perda de tempo.
Nada muito diverso, portanto, do que os críticos da promoção do antiparasitário como elixir milagroso – e de sua inclusão nos irresponsáveis “kits covid” ofertados no auge da pandemia – vinham dizendo desde sempre; e nada diferente do que análises sóbrias da plausibilidade biológica prévia da proposta de se usar ivermectina contra o SARS-Cov-2 já tinham cantado, antes mesmo de que o primeiro ensaio clínico em humanos começasse.
No entanto, esse resultado recente, obtido no Reino Unido, vem sendo usado na construção de um argumento curioso: o de que as críticas ao uso da ivermectina contra a COVID-19 teriam sido precipitadas, exageradas – quase uma forma de negacionismo; que os críticos, no frigir dos ovos, estavam “tão errados quanto” a turma do kit covid.
Destaque
Essa interpretação criativa deriva de um dado isolado presente no estudo, e que os autores tratam de modo circunspecto: o de que o tempo até “o primeiro sinal de recuperação autorreportada” foi menor (média de dois dias a menos) no grupo de voluntários que recebeu tratamento usual, mais ivermectina, do que no grupo que recebeu apenas o tratamento usual.
Há quem tenha visto, na suposta “falta de destaque” dada a esse ponto, uma forma de autocensura dos cientistas responsáveis, talvez porque sequer ousar sugerir que a ivermectina poderia, quem sabe, de repente, trazer algum benefício para pacientes de COVID-19 seria politicamente incorreto, uma falta de bona fides esquerdista.
Um primeiro ponto a considerar: “falta de destaque” é uma avaliação um tanto quanto peculiar. O resultado aparece logo no topo da seção Findings (“Achados”, ou “Descobertas”) do artigo. O que não deixa de ser uma posição de algum destaque. É verdade que, no geral, os autores do estudo não ficaram impressionados com esse ganho de dois dias – tanto que a conclusão geral que tiraram é de que a ivermectina é inútil contra COVID-19. Mas não ficaram impressionados, por quê? Porque até na Inglaterra há lulistas (ou antibolsonaristas) fanáticos, ou por boas razões científicas?
Escrito nas estrelas
Esse estudo tem três características muito particulares: ele foi aberto (os pacientes que tomaram ivermectina sabiam que estavam tomando ivermectina), sem controle placebo e o resultado específico em que foi visto sinal de benefício (tempo até primeira recuperação) foi autorreportado, isto é, avaliado segundo a opinião subjetiva dos pacientes. Havia também medidas objetivas (hospitalização, óbito) e, nessas, o antiparasitário não mostrou nenhuma vantagem.
Uma coisa em que insisto há tempos é na importância de se estudar as metodologias empregadas na promoção de pseudociências, como ferramenta para desenvolver o senso crítico na hora de avaliar a metodologia usada em estudos de áreas, em geral, mais robustas e legítimas. Parafraseando o psicólogo holandês Eric-Jan Wagenmakers, qualquer método que, mesmo quando corretamente aplicado, permite concluir, por exemplo, que seres humanos são capazes de prever o futuro deve ser cuidadosamente reavaliado.
Se mais divulgadores científicos assinassem Correlation – o periódico em que astrólogos do Reino Unido se descabelam para tentar provar que astrologia funciona –, menos teriam se encantado com o trabalho de Didier Raoult sobre cloroquina, e talvez menos também estivessem procurando verdades secretas ou timidez politicamente correta no resultado recente sobre ivermectina.
Exemplo relevante: em 1978, o Journal of Social Psychology publicou um artigo (por Mayo, White e Eysenck) mostrando uma forte correlação entre as características psicológicas atribuídas aos signos solares (Áries, Escorpião, etc.) e os resultados de testes personalidade. A festa dos astrólogos durou pouco, no entanto: estudos subsequentes mostraram que o efeito desaparecia quando as pessoas testadas eram ignorantes em astrologia.
Em outras palavras, o resultado positivo vinha do fato de que os voluntários familiarizados com as regras dos horóscopos respondiam aos questionários de personalidade de acordo com as expectativas astrológicas – arianos se declarando extrovertidos, capricornianos, introvertidos, etc.
A história ilustra o papel desproporcional que as expectativas dos voluntários podem exercer em estudos com desfechos subjetivos. Não nos esqueçamos de que os pacientes, no trabalho recente sobre ivermectina, sabiam que estavam tomando o antiparasitário, que durante a pandemia foi promovido de modo incessante por fontes “alternativas”. Os autores do estudo sobre ivermectina tinham plena consciência desse fato. Escrevem:
“A descoberta de pequenas diferenças nos resultados de recuperação autorrelatados pode ter sido influenciada pelas expectativas elevadas de benefício do tratamento com ivermectina, uma vez que o medicamento tinha sido destacado nos meios de comunicação. A direção de qualquer viés de um efeito placebo provavelmente favorecerá o medicamento, em vez de apenas os cuidados usuais”.
Por conta disso, eles haviam pré-estabelecido, antes do estudo começar, um limiar de tamanho de efeito – uma espécie de “barreira estatística” que qualquer resultado, mesmo se à primeira vista positivo, teria de superar para ser considerado clinicamente significativo: isto é, com alguma chance de ser útil na prática. A média de dois dias a menos até o primeiro sinal subjetivo de alívio não chegou lá.
Os autores não decidiram minimizar o resultado depois de tê-lo em mãos; foi o resultado que se mostrou insuficiente, quando confrontado com critérios predeterminados. E lá se vai pelos ares a hipótese da timidez politicamente correta – a menos que se queira considerar que o limiar de tamanho de efeito foi fixado por precognição.
Viés de mediocridade
A polarização política das sociedades ocidentais é um problema grave, que poderia ser mitigado se os lados em conflito estivessem dispostos a reconhecer seus erros e a acolher o que pode haver de correto no “lado de lá”. Desse lugar-comum não decorre, no entanto, que a virtude sempre estará no meio. O filósofo Anthony Flew, em seu clássico “How To Think Straight” (“Como Pensar Direito”), dedica uma seção especialmente lúcida – numa obra já marcada por sua lucidez penetrante – a esse viés de mediocridade:
“Se, como exige este princípio tolo e desonesto, a verdade estivesse realmente, para todos os valores de A a Z, a meio caminho entre A e Z; então deve também estar, de acordo com os requisitos do mesmo princípio, a meio caminho entre o ponto intermediário entre A e Z e Z; e assim por diante, indefinidamente. Esta conclusão é incoerente e absurda”.
Também não é verdade que, nos casos em que “todos estão errados”, todos estão igualmente errados. Aqui sempre é útil citar o imortal ensaio “A Relatividade do Errado”, de Isaac Asimov: dizer que a Terra é plana está errado, e dizer que a Terra é perfeitamente esférica também está errado. Mas estes erros estão longe de ser equivalentes. Seria interessante que a turma do deixa-disso tentasse manter essa simples verdade em mente.
Originalmente publicado na revista Questão de Ciência
*Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de “O Livro dos Milagres” (Editora da Unesp), “O Livro da Astrologia” (KDP), “Negacionismo” (Editora de Cultura) e coautor de “Pura Picaretagem” (Leya), “Ciência no Cotidiano” (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, “Contra a Realidade” (Papirus 7 Mares) e “Que Bobagem!” (Editora Contexto)
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