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Comportamento animal não é lição de moral
O comportamento animal é problemático na ciência, pois é um tipo de viés do observador: ao aplicar conceitos humanos de emoção, sentimentos e propósito a outras entidades, estamos negligenciando as emoções, sentimentos e propósitos que estas outras entidades possam verdadeiramente ter
Daniel J. G. Lahr- Questão de Ciência
Recentemente, a esfera de discussão da internet esbarrou, como o faz de tempos em tempos, na questão “homossexualidade é natural ou não” – e inevitavelmente os olhos se voltam para o que a biologia tem a dizer. A tentativa de justificar ou condenar comportamentos humanos utilizando exemplos da natureza não afeta apenas a sexualidade, diga-se de passagem. É bastante comum a invocação da suposta “lei da sobrevivência do mais apto” em situações de competição onde uma das partes é claramente prejudicada, entre outros casos.
Dependendo de como se encaminha, e de quais pressupostos entram em jogo, este tipo de extrapolação do mundo natural para o social pode adquirir complicações muito sutis. Pretendo demonstrar aqui que, a despeito das vantagens retóricas que possam oferecer, metáforas ou comparações biológicas não são guias válidos ou confiáveis para juízos sobre comportamentos humanos.
A validade desse tipo de argumento é atropelada, logo de cara, pelo problema do comportamento animal, que, em poucas palavras, significa “atribuir sentimentos e emoções humanas a entidades não humanas”. O antropomorfismo é tão antigo quanto a Humanidade, e se apresenta de diversas formas, desde sociedades tribais que atribuem sentimentos (ira, fúria) a fenômenos da natureza, como vulcões, tempestades e terremotos, até o mundo urbano, quando pessoas atribuem emoções pouco prováveis aos seus animais de estimação, como “o gato quer se vingar pois acha que eu gosto mais do cachorro”.
(É importante esclarecer que não quero dizer que animais não tenham sentimentos. Está mais do que demonstrado que animais, especialmente aqueles com sistemas nervosos complexos como os mamíferos citados, são amplamente capazes de uma grande gama de sentimentos. A questão aqui é a atribuição irrestrita e isonômica de sentimentos humanos aos animais.)
O antropomorfismo é problemático na ciência, pois é um tipo de viés do observador: ao aplicar conceitos humanos de emoção, sentimentos e propósito a outras entidades, estamos negligenciando as emoções, sentimentos e propósitos que estas outras entidades possam verdadeiramente ter (claro, excluindo vulcões, nuvens de trovoada e o computador travado).
Um segundo problema reside em utilizar formas de antropomorfismo para tentar legitimar (ou condenar) comportamentos humanos. A moral, assim como a ética, são conceitos exclusivos do ser humano.
Estas ideias foram extensivamente debatidas por filósofos muito mais capazes do que eu, portanto deixo aqui apenas a definição informal que costumo utilizar: moral, ou moralidade, se refere a um conjunto de princípios que determina o certo e o errado; ética por sua vez, se refere a um conjunto de regras práticas que visa regimentar os princípios da moral. De qualquer maneira, são conceitos inexistentes em animais – talvez os grandes símios (orangotangos, chimpanzés e gorilas) tenham algo parecido, mas certamente nenhum outro animal com menor cognição é capaz de imaginar estes conceitos.
Usar exemplos do mundo animal para decidir se um comportamento humano merece ser elogiado, tolerado ou repreendido envolve um complicado jogo de espelhos, em que projetamos indevidamente nossos preconceitos, crenças e expectativas sobre algo que existe fora da Humanidade e vemos (também indevidamente) essas mesmas crenças e expectativas refletidas de volta, mas agora supostamente referendadas pelo oráculo da “natureza”.
Desta maneira, é intelectualmente desonesto mobilizar o comportamento animal como exemplo ou argumento em debate de fundo ético ou moral. Farei abaixo um exercício de reductio ad absurdum para demonstrar a problemática deste tipo de justificativa.
“Boa noite Cinderela” nos aracnídeos
Os solífugos são aracnídeos solitários e canibais. Neste tipo de animal, entende-se que os machos precisam utilizar estratégias elaboradas para evitar serem devorados pelas fêmeas (geralmente maiores) durante a cópula. Os solífugos, portanto, têm uma metodologia bastante peculiar: ao abordar a fêmea, de forma bastante violenta, conseguem manipulá-la até induzir um torpor (desmaio).
Após este desmaio, o macho então abre forçosamente a genitália feminina para inserir seus espermatóforos [solífugos não possuem órgão intromitente (pênis), e realizam transferência indireta de esperma utilizando “bolsinhas” chamadas espermatóforos].
Temos, portanto, um exemplo natural de indução de desmaio seguido de abuso sexual, comportamento imoral e ilegal na maioria das sociedades humanas. Solífugos, no entanto, não têm moral, ética ou código penal. Seria, portanto, absurdo utilizar solífugos para naturalizar o Boa Noite Cinderela.
Escravidão em formigas
Existe uma diversidade de espécies de formigas denominadas “esclavagistas”. Estas espécies atacam formigueiros de outras espécies, e enquanto a guerra entre as formigas distrai as defesas do formigueiro vitimado, uma classe especial de esclavagistas invade e rouba as pupas (crias) do formigueiro invadido.
Estas pupas irão eclodir escravas, já no novo formigueiro. Ademais, esta leva de escravas vai envelhecer e morrer, portanto, as esclavagistas realizam ataques periódicos a outros formigueiros para manter seu suprimento de formigas escravas.
Não preciso tecer comentários sobre a imoralidade que seria utilizar formigas esclavagistas como subsídio para naturalizar a escravidão humana. As formigas não têm moral, ética, nem nada parecido. Completamente absurdo compará-las ao ser humano!
Vimos dois exemplos negativos, absurdos, que evidenciam os perigos do comportamento animal. Vamos agora olhar ainda dois exemplos positivos, também absurdos, que também indicam que não faz sentido usar exemplos “naturais” para legitimar ou demonizar comportamentos humanos.
Comportamento animal: Adoção de bebês
A adoção é também um comportamento muito mais comum entre animais do que as pessoas imaginam. Faz pouco sentido evolutivo: afinal, a mãe ou casal adotivo estará dispensando recursos valiosos para a saúde de um animal que não carrega seu genoma. Mas a natureza está cheia de exemplos que ainda não conseguimos entender direito. Um exemplo recente na literatura é de uma mamãe golfinho nariz-de-garrafa que amamentou e deu cuidados a um filhote de golfinho cabeça-de-melão.
Aos nossos olhos, parece bacana e caridoso, mas dificilmente estes sentimentos estão passando pela cabeça das mamães animais. Algumas hipóteses apontam para uma certa abertura proporcionada pelos hormônios da lactação: geralmente, fêmeas adotam quando já estão cuidando de um bebê próprio, e foi o caso da fêmea de golfinho nariz-de-garrafa.
De qualquer maneira, apesar de o caso ser bonitinho, esta não é a justificativa que os seres humanos têm para adotar crianças. A adoção humana é um ato complexo, que envolve inúmeros atores, afeta emoções diversas e está submetido a normas consagradas em legislação. A adoção dá apoio emocional, social, estrutural e financeiro a crianças, e é um gesto de extrema importância na sociedade moderna. Não é necessário olhar para os golfinhos para justificar a decisão humana de adotar uma criança.
União estável
Muitos animais estabelecem parcerias sexuais monogâmicas. Na maior parte dos casos, esta parceria dura apenas por um tempo limitado, como uma temporada de acasalamento, ou alguns anos.
A maior parte das aves estabelece algum tipo de parceria sexual monogâmica. Um subgrupo pequeno estabelece parcerias monogâmicas pela vida toda, como em um casamento. Dentre as mais conhecidas aqui no Brasil, temos os tucanos e, vejam só, os urubus. Estas aves formam casais que geralmente duram por toda sua vida, e também são caracterizados por dividir as tarefas de cuidado dos filhotes.
A teoria evolutiva indica que isto beneficia as aves pois os filhotes são muito frágeis, mal conseguem se alimentar sozinhos: portanto, teria sido vantajoso, do ponto de vista evolutivo, que os pais tenham maior dedicação aos filhotes. Uma excelente maneira de ter grande dedicação aos filhotes é dividir o trabalho entre pai e mãe, como tenho certeza que leitores com filhos já sabem.
Neste caso, também, não precisamos buscar na natureza exemplos de comprometimento dos pais com os filhotes para justificar a formação de famílias na espécie humana. Pessoas formam parcerias estáveis e duradouras para cuidar dos filhos há milênios; temos estruturas sociais e legais de apoio a esses arranjos, além de mitos, lendas e narrativas que giram em torno desse comportamento.
Ao olhar para estes exemplos extremos, até exagerados, entendo que os leitores possam perceber que é pouco frutífero buscar na natureza uma “justificativa” ou uma “condenação” daquilo que seres humanos fazem ou deixam de fazer. O mundo animal não é árbitro para juízos de valor.
Por Questão de Ciência
*Daniel J. G. Lahr, PhD, é professor associado no IB-USP, e atua na área de microbiologia evolutiva
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