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A relatividade da incerteza nas discussões sobre ciência
É necessário limitar, hierarquizar, ordenar e organizar as incertezas e o método científico é o melhor caminho para isso
Por Carlos Orsi*
Revista Questão de Ciência
Lá se vão 30 anos, Isaac Asimov publicava o que talvez seja um dos melhores ensaios de divulgação científica já escritos, The Relativity of Wrong (algo como “A Relatividade do Errado”), em que explicava que, embora a as ideias da ciência sobre a realidade sempre estejam, de algum modo, erradas – afinal, a ciência progride a partir da crítica e da revisão das próprias descobertas – elas estão menos erradas hoje do que estavam há cem, ou duzentos anos.
Diz um trecho: “Quando as pessoas achavam que a Terra era plana, elas estavam erradas. Quando as pessoas achavam que a Terra era esférica, elas estavam erradas. Mas se você acha que achar que a Terra é esférica é tão errado quanto achar que a Terra é plana, então seu ponto de vista está mais errado do que os outros dois juntos”.
Asimov comenta que foi provocado a escrever o ensaio ao receber uma carta, “de um estudante de Literatura que sentia a necessidade de me ensinar ciência”, que o acusava de ter uma visão talvez rósea demais do estado do conhecimento científico no século 20: se cada nova geração de cientistas prova que a anterior estava errada em alguma coisa, então dizer, como Asimov dizia, que graças à Relatividade e à Mecânica Quântica “agora conhecemos o básico sobre as regras do Universo” seria ingênuo.
Retomo o texto asimoviano porque, algum tempo atrás, encontrei-me numa situação parecida. Participava de um evento sobre “Fake News em Saúde”, organizado pela Fundação Oswaldo Cruz, em Brasília.
Eu defendia a posição de que, quando órgãos de comunicação oficiais estimulam o público a buscar terapias sem base em evidência científica, estão, para todos os fins práticos e éticos relevantes, espalhando “fake news em saúde”.
É claro que não se trata de um ponto de vista agradável para apresentar num evento patrocinado, exatamente, por um órgão público da área de saúde, mas a recepção foi polida e interessada e o debate que se seguiu, vigoroso, mas civilizado.
Até que um senhor na plateia pediu a palavra – era daquele tipo que não faz “perguntas”, mas “colocações” – e, depois de infligir ao público uma autobiografia que ele próprio deve considerar interessantíssima, e de manifestar sua “irritação” com minha fala, resolveu fazer a caridade de me esclarecer quanto à impermanência e à incerteza inerentes ao conhecimento científico.
Para sublinhar a profundidade de sua compreensão dos métodos e processos da ciência, o orador irritado fechou sua “colocação” afirmando que ninguém realmente sabe nada sobre “a segurança dos transgênicos, a relação entre celular e câncer de cérebro e o efeito estufa”.
Como o horário reservado ao evento já se aproximava do fim, e em respeito à mesa, respondi apenas que, de fato, vivemos imersos em incertezas, mas que é preciso agir de modo responsável no mundo, a despeito disso; portanto, é necessário limitar, hierarquizar, ordenar e organizar as incertezas, e que o método científico é o melhor caminho.
Se tivesse mais tempo, teria ido mais fundo no fato de que nem todas as incertezas nascem iguais: a incerteza quanto à minha capacidade de sair voando pela janela do oitavo andar é bem diferente da incerteza quanto à origem da vida na Terra, mas bem próxima da incerteza quanto à eficácia da homeopatia, por exemplo.
Assim como o conceito de “errado” no ensaio de Asimov, “incerto”, quanto aplicado à ciência, é um termo relativo, que abrange uma enorme latitude. Os três exemplos escolhidos pelo orador irritado são muito bons: tratam-se de casos onde a incerteza científica é excepcionalmente, fantasticamente baixa.
Para chegar a essa conclusão, basta prestar mais atenção no consenso formado pela preponderância da literatura especializada do que em estudos isolados, ou no hype de mídia.
A questão dos transgênicos já recebeu amplo tratamento aqui mesmo nesta revista, mas para citar apenas uma das mais fortes evidências: há décadas que praticamente toda a ração usada para alimentar gado, porcos e galinhas nos Estados Unidos é de origem transgênica.
E até hoje os criadores não viram nenhum sinal de declínio da saúde dos animais; é importante notar que animais doentes significam prejuízo para os criadores, e é extremamente improvável que eles ficassem quietos a respeito – e continuassem a comprar ração transgênica – se houvesse algum problema.
Celulares e câncer de cérebro são outra falsa controvérsia. Embora algumas entidades excepcionalmente cautelosas ainda insistam na necessidade de “mais estudos”, a conjugação de três fatores – baixa plausibilidade prévia, volume e qualidade da evidência, raridade do câncer – somam-se de modo a reduzir substancialmente a incerteza quanto à segurança do uso de telefones móveis.
Ano passado, o jornal britânico The Guardian publicou um artigo alarmista sobre o assunto e acabou tendo de abrir espaço para uma refutação assinada por dois cientistas.
Tratando um fator por vez: baixa plausibilidade prévia significa que a radiação usada pelos telefones celulares não tem efeito biológico conhecido capaz de afetar a genética das células humanas, e cânceres são desencadeados por mutações genéticas. Por causa disso, a ciência mais básica já indica que a ligação não deve existir.
Quanto ao volume e qualidade da evidência, de fato há resultados contraditórios nos estudos sobre o assunto, mas a maioria dos trabalhos de boa qualidade indica ausência de risco; e os estudos que apontam haver risco não conseguem ser replicados.
Por fim, a raridade do câncer: se celulares realmente causassem câncer no cérebro, deveríamos ter assistido a uma explosão de casos dessa doença nos últimos 20 anos, o que certamente não aconteceu.
Quanto à terceira grande incerteza do orador irritado, o “efeito estufa” – suponho que ele se referisse ao aquecimento global antropogênico, já que “efeito estufa” (a capacidade do dióxido de carbono de aprisionar calor na atmosfera) é um fato científico básico – representa uma questão é alvo de amplo consenso entre os especialistas no tema, e também já foi objeto de artigo nesta revista.
Apelos genéricos e não qualificados à “incerteza”, quando se discute ciência, costumam servir de camuflagem para a velha falácia do apelo à ignorância – a falsa pressuposição de que, se eu não posso garantir que estou certo, então também não posso afirmar que você está errado.
Não é porque não consigo explicar uma luz estranha que aparece de repente, no céu, que sou obrigado a acreditar quando me dizem que se trata de uma nave vinda de Marte.
Apelos à genéricos à incerteza científica também muitas vezes desembocam em acusações de arrogância por parte dos defensores da ciência, e em apelos à humildade epistemológica. É algo que sempre achei intrigante.
Enfim: enquanto a epistemologia científica – que toma a incerteza como um dado constituinte – é tratada como arrogante, que adjetivo descreveria os que insistem que suas experiências pessoais, casos anedóticos, dogmas religiosos ou “papers” favoritos, escolhidos a dedo e retirados do contexto geral do campo de estudo, têm mais credibilidade do que o suado consenso dos especialistas, construído com base em centenas de estudos, debate vigoroso e com a consciência clara do risco de erro, a cada curva e passo do caminho?
*Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência
Publicado, em 25 de março de 2019, originalmente com o título: A relatividade da incerteza quando o assunto é ciência
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