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“Objetivo da máquina de desinformação é construir a ignorância”, diz professor da UFMG
Para Yurij Castelfranchi, o objetivo da máquina de desinformação é construir a ignorância. O professor e pesquisador, coordenador do Amerek, participou do programa InterD
Por AD Luna
O que leva as pessoas a divulgarem notícias falsas e mentiras? Quais as maiores dificuldades no combate às fake news? O que está por trás da produção desse tipo de comunicação de desinformação? Convidado da edição #15 do programa InterD – música e conhecimento, Yurij Castelfranchi, professor de Sociologia da ciência e da tecnologia da UFMG falou a respeito. Ele também coordena o Curso de Especialização em Comunicação Pública da Ciência da UFMG, o Amerek.
Castelfranchi foi jornalista na Itália por mais de uma década. Quando chegou no Brasil, atuou como repórter de ciência em um laboratório universitário. No entanto, aproximou-se da pesquisa acadêmica, e tornou-se professor universitário. “Isso tirou bastante do meu tempo para fazer divulgação científica na linha de frente, mas nunca me afastei totalmente. Sempre tentei manter um pé nos dois lados da pesquisa científica e de sua divulgação”, conta.
Leia trechos da transcrição da entrevista para o InterD e ouça no player abaixo.
Ouça “Yurij Castelfranchi, professor da UFMG e coordenador do Amerek, no InterD #15” no Spreaker.
InterD – O que é o Amerek, quais os principais objetivos e a missão do projeto?
Yurij Castelfranchi – O Amerek, que é o nosso curso da UFMG de especialização em Comunicação Pública da Ciência, nasce, justamente, tanto dessa minha primeira experiência de ter feito um mestrado na área na Itália, numa escola internacional, que tinha esse desafio de juntar tanto alunos como professores, gente da área de comunicação, mas também pessoas da área da pesquisa científica.
Sempre tive o sonho de recriar essa experiência lá porque foi tão impactante para minha vida e tão eficaz, do ponto de vista profissional. Já participei, fui docente, sou ainda docente de vários outros cursos no Brasil, e colaboro com outros cursos na América Latina nessa área de divulgação científica. Mas eu vi que, no Brasil, fora do eixo Rio-São Paulo, estava faltando bastante e tinha muita demanda.
Às vezes eu era entrevistado por jornalistas, que me perguntavam se não ia ter alguma formação para jornalistas, para melhorar a cobertura de ciência. Outras vezes era questionado por colegas cientistas sobre como fortalecer a capacitação de divulgação científica.
Então tivemos essa ideia. Um grupo de pessoas que já tinha criado, aqui na UFMG, uma formação transversal em divulgação científica, ou seja, é uma formação para todos os alunos de graduação de todas as áreas, de todas as unidades, que, se quiserem, podem complementar seu Bacharelado, sua Licenciatura, com créditos específicos de divulgação científica.
A gente já tinha essa experiência na UFMG para alunos de graduação e a gente pensou em criar também uma pós, que foi o Amerek. O nome é uma palavra indígena, “krenak”, do povo Krenak aqui de Minas Gerais, e significa “se beliscar”, “se dar um cutucão”, eventualmente “se abraçar”.
Então a ideia é imaginar formas de divulgação científica não só de cima para baixo, não só de transmissão de informação, de conhecimento, mas, também, de construção de pontes e de diálogo. Inspirado, também, nas dinâmicas tão comuns nos grupos ameríndios indígenas de uma comunicação, tomada de decisão, construção de conhecimento mais coletiva, mais horizontal.
Então o Amerek pretende não só ensinar a explicar a ciência, não só ensinar como transmitir a informação, mas ensinar como sermos catalisadores de cidadania científica.
Ou seja, como colocar as pessoas em condição não só de apreciar a ciência, mas de participar da tomada de decisão, de se apropriar desse conhecimento e assim por diante.
InterD – A gente percebe pelas postagens da Amerek nas redes sociais que há uma abertura de diálogo com outros tipos de saberes, como por exemplo, o de povos indígenas. Qual a importância de se estabelecer esse tipo de diálogo com a sociedade?
Yurij Castelfranchi – Para cumprir com a nossa promessa de que comunicação pública da ciência não é apenas popularizar parte desse conhecimento para o público não-cientista, não-especializado, é fundamental levar em conta dois fatores.
O primeiro é que um curso como esse, uma prática como essa que a gente acredita ser a mais eficaz para a democracia contemporânea, só pode ser transdisciplinar. Então tem que levar em consideração não só as diferentes disciplinas, mas também diferentes modos de construir conhecimento, de tomar decisões.
Então sim, sem dúvida, para o Amerek esse diálogo, transversalidade, essa conexão entre saberes é fundamental. É assim que você constrói… inclusive porque as pessoas – a gente sabe isso – de diferentes áreas de pesquisa, não é que você receba uma informação e aí incorpore no seu conhecimento de forma mais ou menos automática, não são fichinhas que caem na cabeça.
As pessoas têm posicionamentos políticos, têm valores morais, têm necessidades de vida, então elas pinçam, selecionam as informações e as incorporam dentro dessa sabedoria, desses valores que elas têm para construir sua própria perspectiva.
Então é inevitável que apenas divulgar a ciência num sentido muito linear, “vou te passar as informações e nosso problema está resolvido”, não funcione muito bem. Então o diálogo é uma palavra-chave do Amerek, por isso que é beliscão, contato, abraço e não apenas popularização.
E esses saberes que, em conexão, não são apenas saberes indígenas, mas, em geral, maneiras de construir perspectivas sobre o mundo, algumas das quais estão na academia, por exemplo a arte e a filosofia, e outras estão fora da academia, por exemplo os saberes tradicionais ou populares.
Então o diálogo se constrói só se for um diálogo de verdade e não só ter alguém em cima que só emite e explica, e alguém embaixo que só pode apreciar ou venerar aquele conhecimento. Se trata, realmente, de construir conexões.
InterD – A respeito do negacionismo contra a ciência, quais as melhores formas de se lidar com esse fenômeno e por que ele está tão forte atualmente?
Yurij Castelfranchi – Esse aspecto de que transmitir informação hoje em dia é cada vez mais indispensável, vital – inclusive para a sobrevivência da democracia -, mas que também não é suficiente, foi muito visível, tantos nos casos de negacionismo, de teorias da conspiração, quanto na crise de desinformação, na “infodemia” que estamos vivendo com a pandemia.
Simplesmente fazer o chamado “debunking”, ou seja, desmontar, desmistificar, mostrar a falsidade de certas fake news, simplesmente explicar como funciona a vacina, ao mesmo tempo que são coisas cruciais, que precisamos fazer cada vez mais, mas elas sozinhas não têm como combater a desinformação porque a desinformação não é falta de informação. Não falta acrescentar mais informação.
A desinformação é justamente um problema de que um oceano de informação é cada vez mais difícil para certas pessoas entenderem em quais informações confiar, quais devem ajudar a construir suas decisões.
Então o que os mecanismos, máquinas dos fabricadores de mentira têm como objetivo é construir um…
“A desinformação é muitas vezes construída de propósito para incitar dentro de nós, mobilizar, emoções primárias. Então é medo, é raiva, é indignação, é ódio. São feitas de propósito para isso, para destruir a confiança e a possibilidade de convívio social, de diálogo”
InterD – Por que as pessoas divulgam tantas informações erradas e notícias falsas?
Yurij Castelfranchi – Em primeiro lugar, tem, pelo menos, dois tipos grandes de maneiras de veicular desinformação. Na área de pesquisa, a gente distingue, por exemplo, “misinformação” de má informação. “Misinformação”, pros ingleses, é uma informação incorreta, mas não necessariamente transmitida em má fé. Ou seja, você pode estar errado, você pode acreditar numa coisa errada, numa coisa imprecisa e divulgá-la.
E má informação é quando você, de propósito, quer atingir alguém, quer prejudicar alguém. E aí, nesse caso, nem necessariamente a informação precisa ser falsa. Você pode, por exemplo, revelar notícias eventualmente verdadeiras, mas com o objetivo de destruir uma pessoa.
Vamos distinguir quem faz isso em boa-fé de quem faz isso em má fé. As pessoas em boa fé, em geral, compartilham com base em emoções primárias.
A desinformação é muitas vezes construída de propósito para incitar dentro de nós, mobilizar emoções primárias. Então é medo, é raiva, é indignação, é ódio. São feitas de propósito para isso, para destruir a confiança e a possibilidade de convívio social, de diálogo.
Muitas pessoas divulgam isso ou porque estão sinceramente preocupadas; é uma notícia que finge que algo muito grave, muito perigoso está acontecendo, então você quer avisar seus parentes, seus amigos para se precaver. Ou porque a informação, a desinformação parece vir de fontes com que a gente concorda moralmente ou politicamente.
Normalmente, a desinformação aponta terríveis culpados, malignos, que estão tentando fazer mal à humanidade ou ao Brasil, e, quando a fonte parece compartilhar com suas raivas, odiar os mesmos grupos que você odeia, você tende a achar que é verdadeira.
Muitas pessoas raciocinam até meio superficialmente, do tipo: “Eu não chequei, mas parece verdadeiro porque fala mal daquela pessoa que eu já sei que não presta”, ou “daquele partido, daquele grupo, daquele movimento social que já sei que não presta”.
Muitas pessoas têm uma atitude um pouco superficial de: “Bom, talvez não seja verdade, mas mesmo que não for verdade essa, com certeza alguma outra coisa terrível sobre essa pessoa ou esse partido deve ser verdade, então vou divulgar.”.
Então, participa, digamos, de uma luta em que você se sente confortado, justificado, se sente do lado certo, moral e político. Muita desinformação é feio para meio que aliciar e consolar a gente em nossos preconceitos, em nosso ódio, nossa raiva, e fazer sentir que estamos, na verdade, certos em nosso ódio, nosso preconceito.
Grupos organizados de notícias falsas
Agora, a grande produção – diferenciando quem difunde, em parte, em boa fé ou porque está assustado, indignado ou porque acha que está em uma guerra moral e política, de quem produz essas coisas, as máquinas, as fabricantes de mentiras são grupos organizados, com acesso a recursos, não são ignorantes, têm alta escolaridade.
Esses que fazem isso em má fé, que são os grandes motores da desinformação, os grandes produtores fazem, também, por vários motivos.
Em alguns casos, se trata de motivos exclusivamente monetários. Então, se você é um influenciador digital, tem um portal, tem um canal do YouTube, muitos grupos se deram conta que dava mais cliques, dava mais circulação, dava mais engajamento. E não se importam nem com o tipo de desinformação.
Campanha presidencial norte-americana
Por exemplo, tem um grupo de jovens adolescentes, lá na Macedônia, na Europa, que, na época da campanha eleitoral nos Estados Unidos, se deram conta de que quando publicavam mentiras estratosféricas sobre a candidata Hillary Clinton, recebiam mais cliques, mais compartilhamentos e, portanto, mais dinheiro das redes sociais do que quando compartilhavam desinformação sobre Trump.
Então decidiram compartilhar desinformação sobre a Hillary, sem ter o menor interesse no resultado da eleição nos Estados Unidos. Eles estavam só interessados em ganhar suas mesadas, digamos. Muitas pessoas produzem ou difundem desinformação por razões… não tem muito interesse no tipo específico de desinformação que está veiculando.
Em outros casos, sim, são grupos de interesse econômico maior, são empresas que conseguem alavancar seus negócios caluniando determinadas áreas da medicina vez ou outra, vendendo, justificando certa terapia milagrosa. Isso a gente viu muito agora na pandemia.
Razões políticas da desinformação e o antivacinismo
E, por fim, tem o que é dominante, por exemplo, agora no Brasil, mas também na Itália, nos Estados Unidos – é muito importante esse componente -, razões estritamente políticas.
Ou seja, grupos políticos, muitas vezes radicais e antidemocráticos, se deram conta que cavalgar, digamos, insuflar teorias de conspiração ou determinados tipos de desinformação agrega à sua base ao redor do ódio, de construir um inimigo imaginário.
Nesse caso, também, nem sempre eles escolhem qual desinformação vincular com base no conteúdo dela, às vezes é simplesmente uma escolha tática, com base no que me permite ter mais eleitores mobilizados, engajados comigo.
O antivacinismo foi cavalgado por diferentes grupos e por diferentes razões, em diferentes países. Não necessariamente ser “anti-vax” é uma coisa de direita ou de esquerda, mas, em alguns países, acabou se tornando a base principalmente de um lado político em despeito de outro porque grupos políticos decidiram instrumentalizar, transformar em arma política uma teoria ao invés de outra.
Teorias da conspiração, negacionismo climático e política
Já foram usadas teorias da conspiração inverossímeis para ter eleitores. Por exemplo, na Itália, um partido político usou a teoria de que as trilhazinhas que saem do avião à jato quando voam, que são de cristais de gel, na verdade seriam terríveis substâncias químicas soltas de propósito na atmosfera para fazer adoecer a população para manipular as mentes, para controlar a população.
E isso não tem nada de político em si, nesse delírio, mas um partido na Itália usou isso explicitamente em sua campanha eleitoral, por exemplo.
Então, são três razões para os fabricantes de desinformação: moeda no bolso; interesse econômico mais amplo, ou seja, derrubar determinados concorrentes ou vender seu produto – na área de saúde e medicina, por exemplo, acontece isso; ou razões políticas, por exemplo, o negacionismo climático está muito mais associado, nas pessoas, à posição política do que ao nível de escolaridade.
Os negacionistas climáticos não necessariamente são ignorantes, não sabem o que acontece. Tem motivos políticos para você defender que isso seria uma farsa ou coisa dessas.
“O objetivo da máquina de desinformação, em geral, é construir a ignorância. A ignorância não é a causa que faz com que as pessoas acreditem. É o objetivo dessas máquinas. Elas fabricam pessoas polarizadas, que querem acreditar em uma teoria da conspiração e que, portanto, se tornam ignorantes porque selecionam só as aparentes notícias que consolam seus ódios e seus preconceitos”
Esses pontos já mostram porque é tão difícil o combate às fake news. Ou seja, a desinformação, as fake news não estão ligadas só a um problema de falta de conhecimento das pessoas, ou irracionalidade, ou histeria. Não é falta de informação.
Pelo contrário, tem muitíssima informação e o objetivo de muitos desinformadores profissionais é impedir que as pessoas consigam escolher em que fonte confiar, é construir um clima de suspeita, de desconfiança sobre todas as instituições oficiais que mediam as informações, por exemplo o jornalismo ou as universidades.
O objetivo da máquina de desinformação, em geral, é construir a ignorância. A ignorância não é a causa que faz com que as pessoas acreditem. É o objetivo dessas máquinas. Elas fabricam pessoas polarizadas, que querem acreditar em uma teoria da conspiração e que, portanto, se tornam ignorantes porque selecionam só as aparentes notícias que consolam seus ódios e seus preconceitos.
…ignorância… não é só política, então não funciona esse efeito só injetando mais informação nesse oceano de informação demais, na verdade. O problema grande é a abundância comunicativa, não é a escassez. Então o combate à desinformação tem que ser em várias frentes.
É lógico que continua sendo importante a gente fazer a informação correta. É lógico que é vital o trabalho, por exemplo, das agências de checagem.
Mas não é suficiente. Tem que ter um trabalho de regulação político das plataformas, tem que ter um trabalho de alfabetização científica, informacional e tecnológica, tanto nas escolas, quanto com os adultos de vários grupos sociais.
E, sobretudo, tem que ter um trabalho de reconstrução desse pacto de confiança entre as instituições e os públicos. E isso, por exemplo, no âmbito das universidades não pode ser feito só com a divulgação científica, no sentido de produzir um portal que desmistifique as notícias falsas, mas tem que ser feito com a extensão, por exemplo. Ou seja, com políticas em que se trabalhe junto com a população.
É isso que constrói confiança e não apenas transmitir de cima para baixo a informação. Então por isso que é um problema sério, que envolve não só os cientistas, só os jornalistas, só as universidades, mas também um trabalho em múltiplas frentes.
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