CGTN: ‘Parceiros de Ouro’: China e Brasil buscam um mundo mais justo e um planeta mais sustentável
“Não Olhe para Cima” e a caricatura do divulgador da ciência
Em “Não Olhe para Cima” é interessante assistir à passagem do astrônomo Randall Mindy pelo que poderíamos chamar – mantendo o espírito de caricatura – de “quatro estágios do engajamento do cientista com o público”
Por Carlos Orsi e Natalia Pasternak*
A comédia “Não Olhe para Cima”, lançada pela Netflix e estrelada por Leonardo DiCaprio, Jennifer Lawrence, escrita e dirigida por Adam McKay, tem causado discussões intermináveis na mídia – incluindo discussões iniciadas por quem acha que essas discussões estão ficando insuportáveis. A Revista Questão de Ciência já publicou uma resenha da obra, mas aqui gostaríamos de abordar um aspecto muito específico da miríade de debates suscitada pelo filme: a caricatura que faz do processo de comunicação entre cientista e público.
Nesse contexto, a palavra caricatura merece especial ênfase: “Não Olhe para Cima” (“Don’t Look Up”, no original) é uma sátira onde todos os personagens são caricaturas de tipos comuns, reconhecíveis, da sociedade.
E uma caricatura é, por definição, um retrato distorcido, criado por um artista que escolhe certas características de seu alvo para destacar ou exagerar, em busca de um efeito cômico que muitas vezes, mas nem sempre, se dá pelo grotesco ou pelo ridículo.
Todos os personagens de “Não Olhe para Cima”, incluindo seus supostos heróis – os cientistas Randall Mindy (DiCaprio) e Kate Dibiasky (Lawrence) – são caricaturas.
Pode-se dizer que algumas dessas caricaturas, como Mindy e Dibiasky, são carinhosas enquanto outras, como Carluxo (desculpe, Jason Orlean, interpretado por Jonah Hill), são impiedosas, mas ninguém ali pretende ser “de verdade”.
Há quem não tenha apreciado “Não Olhe para Cima” exatamente por causa desse bombardeio de exageros. Questão de gosto. Mas perder esse ponto crucial é perder o filme.
As caricaturas em “Não olhe para cima”
Entrando no tema do diálogo entre ciência e sociedade, então, o que a caricatura de “Não Olhe para Cima” exagera para nos fazer rir – e, com isso, permite-nos enxergar com mais clareza?
Gostaríamos, antes de entrar nos percalços sofridos por Mindy e Dibiasky (e de seu aliado na Nasa, Teddy Oglethorpe, interpretado por Rob Morgan), de mencionar um detalhe que passa quase despercebido em meio à barragem de falas satíricas do filme.
Quando a dupla de protagonistas aparece pela primeira vez no telejornal “The Daily Rip” para dar a notícia da aproximação do cometa, toda a equipe do programa, da maquiadora ao apresentador Jack Bremmer (Tyler Perry) espera que o “bloco de ciência” do programa vá ser um bloco de entretenimento. Bremmer pergunta sobre alienígenas e explosões estelares.
Veja também
“Não olhe para cima”: Natalia Pasternak escreve sobre filme da Netflix
“Não olhe para cima” e os perigos do negacionismo
Essa é uma caricatura muito boa da forma como não só a grande imprensa, mas também muitos comunicadores independentes, alguns de grande sucesso, delimitam o nicho da ciência na ecologia da comunicação de massa: uma fonte de entretenimento leve, um respiro entre uma notícia séria e outra.
A ciência, apresentada desse modo, é ao mesmo tempo “profunda” (porque aborda “grandes questões”, como a existência de vida fora da Terra ou o destino das estrelas) e frívola (porque não tem nada a dizer sobre o aqui-e-agora).
Estágios da divulgação da ciência
Mais interessante ainda, porém, é assistir à passagem do astrônomo Randall Mindy pelo que poderíamos chamar – mantendo o espírito de caricatura – de “quatro estágios do engajamento do cientista com o público”.
Qualquer um que já tenha trabalhado na interface entre pesquisadores e não-especialistas já assistiu ao desenvolvimento desses estágios, e deve ser capaz de reconhecê-los (e rir deles) na caricatura construída por Adam McKay. São eles:
Professoral – em geral, o cientista que nunca fez divulgação científica na vida, e vê-se obrigado pelas circunstâncias a fazê-lo, começa tentando reproduzir o tipo de divulgação que faz com seus pares e alunos – ou seja, passar por todas as etapas da pesquisa, explicando com detalhes os métodos e a matemática. É o que vemos quando Mindy tenta explicar os cálculos que permitiram concluir que o cometa vai colidir com a Terra, no gabinete da presidente.
Lacrador – acontece quando o pesquisador já tem alguma experiência – principalmente negativa, vendo seus argumentos bem construídos sendo postos de lado em troca de meia dúzia de frases de efeito – e, indignado, deixa-se levar por discussões intermináveis nas mídias sociais, e acredita que seu papel é “ganhar” discussões, muito mais do que esclarecer e fazer a informação correta circular: ele ainda não distingue entre o troll que deseja provocá-lo e o público maior que está apenas curioso ou desinformado.
Vemos a caricatura dessa fase quando Mindy não consegue sair da frente do computador porque alguém o desafiou dizendo que ele não sabe do que está falando, e ele rebate “lacrando” com uma frase de efeito sobre método científico. Muitos divulgadores nunca abandonam o espírito lacrador, porque este comportamento rende engajamento e cliques – além de ser emocionalmente satisfatório (embora, em geral, contraproducente).
Colaboracionista – o pesquisador acredita que precisa estar “do lado de dentro do sistema” para conseguir mudá-lo, e vai fazendo cada vez mais concessões, até ser neutralizado pelo esquema que desejava infiltrar e combater. No mundo real, isso pode acontecer tanto em governos quando em organizações midiáticas. Mais uma vez, é Mindy que interpreta a caricatura, primeiro sendo o cientista “domesticado” dos telejornais e depois assumindo o papel de conselheiro científico da Casa Branca, participando das campanhas do governo.
Ele tem consciência de que o governo não está nem aí para a ciência, mas acha que ser oposição é pior. Este talvez tenha sido o erro mais triste no Brasil durante a pandemia: o fato de muitos cientistas tratarem o governo atual como apenas um governo ruim, demorando demais a se dar conta de que não se negocia com governos fascistas e autoritários. Mindy percebe seu erro no final do filme, quando perde as estribeiras e finalmente acusa o governo, publicamente, de mentir deliberadamente para a população por interesses políticos e financeiros.
Interdisciplinar – quando finalmente o pesquisador se dá conta de que divulgação científica, para ser bem-sucedida, envolve vários atores e estratégias. As mídias sociais não servem só para lacrar e conseguir cliques, são uma ferramenta que, se bem utilizada, faz a informação correta circular. Vemos isso quando Mindy e Dibiasky lançam a campanha “Just look up” (Olhe para cima!). Também pedem ajuda à cantora Riley Bina (Ariana Grande), percebendo que a parceria com artistas e figuras públicas pode amplificar a mensagem da ciência. O Brasil tem um exemplo histórico muito bonito disso nas excelentes campanhas de vacinação promovidas no passado pelo PNI (Programa Nacional de Imunizações), que envolveram nomes como o da apresentadora Xuxa. Nos EUA, o exemplo foi dado pelo cantor Elvis Presley e pela atriz Debbie Reynolds, durante a campanha para vacinação de adolescentes na década de 50.
Talvez a caricatura da boa divulgação científica “canônica” – em linhas gerais, que traduz os fatos da ciência numa linguagem acessível a não-especialistas, lançando mão de simplificações e analogias – esteja encapsulada no momento em que Dibiaski grita no bar que o asteroide está cheio de ouro e diamantes e os ricos vão deixar todo mundo morrer para se apossar desse tesouro.
Trata-se de uma analogia (não são ouro e diamantes, são metais escassos e terras raras), é uma simplificação (os ricos não vão “deixar todo mundo morrer”, há um plano – irresponsável – para desmontar o cometa em segurança), mas a mensagem é essencialmente correta e muito bem compreendida pelo público: tanto que o que se segue é um enorme quebra-quebra.
Outros pontos da caricatura que valem sorrisos, mas que passam muito rápido: Mindy pedindo desculpas, no início do filme, por publicar pouco; o governo americano questionando não a substância de sua descoberta, mas a fama da universidade em que realiza suas pesquisas; ou o representante da Nasa advertindo-o para “não falar de matemática” com a presidente.
As melhores comédias são as que nos permitem rir de nós mesmos e refletir sobre nossos vieses, erros e momentos ridículos.
Além de – como já foi sobejamente notado – expor o grotesco da negação da ciência e os bugs sistêmicos (na mídia, na política) que viabilizam e amplificam o negacionismo, “Não Olhe para Cima” permite que a ciência e seus comunicadores riam de si mesmos. Porque, no fundo, todo mundo é meio ridículo.
*Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de “O Livro dos Milagres” (Editora da Unesp), “O Livro da Astrologia” (KDP) e coautor de “Ciência no Cotidiano” (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e “Contra a Realidade” (Papirus 7 Mares)
*Natalia Pasternak é microbiologista, pesquisadora associada do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV), presidente do Instituto Questão de Ciência, membro do Committee for Skeptical Inquiry (CSI), colunista do jornal O Globo e coautora de “Ciência no Cotidiano” (Editora Contexto), obra vencedora do Prêmio Jabuti em 2021, e “Contra a Realidade”(Papirus 7 Mares). Atualmente, é “visiting scholar” em Columbia University.
Texto originalmente publicado na Revista Questão de Ciência com o título O ridículo da comunicação da ciência em “Não Olhe para Cima”