Negacionismos científicos na direita e na esquerda
Evoluímos para fazer qualquer coisa que fortaleça a coesão grupal. Se ir contra as evidências fortalece essa tendência, assim agiremos
Por AD Luna
@adluna1
Não somos seres tão racionais como se alardeia há séculos, tendemos a concordar mais com o pensamento de grupos nos quais estamos inseridos do que com evidências e estudos científicos. Tanto pessoas de direita quanto de esquerda podem ser negacionistas quando suas crenças estão em cheque. Tais alegações fazem parte de estudos que estão sendo desenvolvidos atualmente mundo afora e que são alvo de atenção do pesquisador carioca Felipe Novaes. Ele tratou dos temas no programa de rádio InterD – ciência e conhecimento, veiculado na Universitária FM do Recife, e no podcast InterD – ciência e conhecimento.
Novaes é formado em psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), fez mestrado na PUC-Rio e é doutorando da mesma instituição. “Estudo uma teoria sobre a evolução da cognição humana e testo hipóteses sobre se a cognição humana evoluiu por seleção sexual, além da seleção natural”, diz. “Só que acabei indo um pouco para outros temas, inclusive o do negacionismo científico, por interesses além do que faço oficialmente no doutorado”, completa.
A relação entre crença, opinião e evidência é um assunto que já lhe chamava a atenção mesmo antes da entrada na faculdade. “Sempre foi um fenômeno curioso, para mim, como algumas pessoas negam práticas ou teorias evidenciadas e como outras acreditam nas não evidenciadas”.
Ouça entrevista com Felipe Novaes no InterD – ciência e conhecimento
Ouça “Negacionismos científicos na direita e na esquerda, com Felipe Novaes – #03” no Spreaker.
Afinal, somos mesmos seres racionais?
Para Felipe, nós usamos a racionalidade de forma rara. “Se a gente pensasse realmente de forma racional o tempo todo, não conseguiríamos tomar nenhuma decisão no cotidiano, porque precisamos pensar rápido. Pensamos mais com base no que na psicologia social chamamos de heurística, atalhos mentais”.
Grande parte das nossas tomadas de decisões são feitas com base nesses atalhos. É a forma como a nossa mente funciona.
“Se formos levar esse raciocínio para o contexto da ciência, eu poderia dizer que ela nos faz usar uma forma de raciocínio que é muito pouco comum: o de tomar decisões com base em evidências e argumentos lógicos. A gente faz isso a menor parte do tempo”, explica Felipe.
Nossa forma comum de pensar é mais intuitiva. Ao trabalharmos com o método científico, podemos ter opiniões mais embasadas. “Não estou querendo dizer que toda decisão intuitiva é ilógica ou não é eficiente. Mas em determinadas assuntos a gente precisa mais do que isso”, reforça.
A espécie humana é tribal
Como exemplo, ele cita o ato de cozinhar. Quando vamos fazer comida. Sabemos intuitivamente quanto de tempero precisamos colocar no arroz, não é preciso medir. Por outro lado, para tomar algum remédio contra algum mal que nos aflija não se pode usar apenas a intuição. “Porque você precisa de dados para embasar essa decisão, senão poderá ter consequências ruins”.
Felipe Novaes diz preferir o termo tribal ao social, quando aplicado para definir a espécie. “Na verdade, a gente evoluiu para formar uma rede de cooperações, um grupo que vai cooperar ou rivalizar com outros. A gente evoluiu para se relacionar dessa forma e é muito difícil não fazer isso no cotidiano. A polarização política está aí para comprovar esse ponto”.
De acordo com Novaes, nós não evoluímos para ter raciocínios acurados, para buscar a verdade e considerar evidências. Evoluímos para fazer qualquer coisa que fortaleça a coesão grupal. Se ir contra as evidências fortalece essa tendência, assim agiremos.
Negacionismos na direita
Em geral, de acordo com Felipe Novaes, costumamos negar evidências que vão contra as nossas intuições – as quais podem ser produzidas por um grupo específico. E quais são as que fazem, geralmente, pessoas de direita serem negacionistas?
“São intuições, em primeiro lugar, que têm a ver com ideologia. Geralmente, isso não é uma regra, existe uma tendência de que pessoas de direita serem mais a favor de livre mercado do que pessoas de esquerda. Se você tem evidências mostrando que é melhor ter intervenção no mercado, essa pessoa, sendo de direita, não vai concordar. Ela vai dizer que, na verdade, esses dados são mentirosos, foram fraudadas ou não têm qualidade suficiente”.
Como exemplo, ele cita o que se viu no século 20 com as evidências sobre ação humana influenciando o aquecimento global. E ainda o caso clássico das indústrias de tabaco querendo contratar cientistas ligados ao governo do ex-presidente americano Ronald Reagan, para tentar mostrar que não haveria relação entre câncer de pulmão e o consumo de cigarros.
O espectro ideológico da direita (conservadores) possui tendências psicológicas ligadas à diminuição de incertezas e inseguranças. Elas querem conservar a ordem e a estabilidade social, e uma das formas de fazer isso é se apoiar na tradição. A tradição torna o mundo menos caótico, oferecendo papéis sociais e costumes que guiam as relações. E tal ordem é mantida por autoridades (religiosas, políticas, familiares), daí o apoio dos conservadores à autoridade e a ênfase moral na lealdade. Felipe Novaes, no artigo “Negacionismo científico à esquerda e à direita”
Negacionismos de esquerda
Felipe Novaes diz que é importante levar em conta que os negacionismos da direita estão mais em evidência por conta dos acontecimentos atuais, a exemplo da pandemia da covid-19.
Para Felipe, a esquerda possui certos negacionismos típicos por conta de um viés que é muito comum nesse espectro político: o igualitarismo cósmico. “É a ideia de que grupos humanos ou indivíduos não têm diferenças entre si ou, se têm, elas são causadas pelo meio ambiente”, explica.
“Isso faz com que a esquerda, geralmente, tenda a ser cética em relação a diferenças individuais em geral. Incluindo diferenças de grupo. Por exemplo, diferenças entre homens e mulheres. Ou a esquerda vai tender a negar as diferenças ou vai falar que ‘se não fosse o ambiente mais machista, homens e mulheres teriam idênticos”, aponta o psicólogo.
Há uma tendência antes bastante observada na esquerda que, atualmente, também é encontrada no discurso de pessoas ditas de direita: a grande teoria da conspiração das indústrias farmacêuticas.
Para Felipe, as pessoas de esquerda tendem a ter uma dificuldade maior em aceitar qualquer coisa associada ao livre mercado. “Eles têm a intuição de que o que vem de grandes empresas possui alguma coisa errada. Só que agora me parece que na direita está crescendo a ideia que é preciso criar fronteiras nacionais mais bem definidas. E que o trabalhador médio está sendo prejudicado: ou por governo de esquerda ou por grandes empresas que são ‘globalistas’ – um termo que está sendo bastante usado”.
Nos Estados Unidos e na Europa, muitos progressistas abrigam um discurso neo-ludista, anti-tecnologia baseado na ideia de que o que é natural é bom. Além disso, a esquerda tende a ter uma atitude negativa contra empresários (como os da indústria farmacêutica). Isso conecta muitos progressistas a movimentos antivacina e anti-alimentos geneticamente modificados, ao mesmo tempo em que torna irrefreável sua afinidade com a indústria de alimentos orgânicos e de terapias alternativas. Felipe Novaes, no artigo “Negacionismo científico à esquerda e à direita”
Neoliberalismo malvadão, globalismo malvadão
O pesquisador informa que há alguns setores específicos da direita que possuem problemas com grandes empresas – a exemplo das grandes empresas farmacêuticas. “Eles são mais tradicionalistas no sentido de achar que as comunidades devem ser muito bem separadinhas. Não deve haver um grande poder central ou global, seja político ou econômico. São as mesmas pessoas que falam que a ONU é comunista, por exemplo”.
A desconfiança desses setores não é com o livre mercado, mas com a concentração de poder. Por outro lado, a desconfiança da esquerda se dá em relação ao neoliberalismo, no caso das grandes farmacêuticas.
“O que a esquerda geralmente fala do neoliberalismo é muito parecido com o que a direita fala sobre globalismo. São coisas que têm algum fundo de realidade, mas que os extremos dos dois espectros usam como tema recorrente em teorias da conspiração. É o neoliberalismo malvadão e o globalismo malvadão”, conclui Felipe.